quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A República nas Caldas

Não comentarei a exposição que está patente no Museu de José Malhoa, que ainda não visitei, mas deixo aqui duas ou três observações suscitadas pela leitura do catálogo amavelmente oferecido por uma das suas comissárias, a Dr.ª Isabel Xavier.
A exposição toma como tema central a fundação do Museu de José Malhoa. Retoma nesse aspecto o objecto de uma anterior exposição, efectuada em 1996, denominada “António Montês e o Museu de José Malhoa”. Mas enquanto naquela a perspectiva dominante era a do contributo do principal entusiasta e dinamizador do projecto e seu primeiro director, nesta exposição a fundação do museu é filiada na politica cultural republicana, designadamente a politica para o património e museus.
Com esta linha de abordagem cruza-se todavia a primeira, o que é salientado no catálogo, mas talvez pudesse ser sublinhado de forma mais vincada. O conceito de museu de arte, tendo como núcleo fulcral a obra de José Malhoa, não é incompatível com o de museu regional, ou museu de artes, abarcando outras áreas da produção artística das Caldas, como a cerâmica e a escultura, e outros criadores contemporâneos ou sucedâneos do pintor.
O novo museu, colocado sob a égide de um artista celebrado, é fundamentalmente uma peça da afirmação das Caldas como pólo regional dinâmico e como tal merecedor de reconhecimento nacional. A investigação realizada em 1996, nomeadamente a que foi conduzida por Luís Nuno Rodrigues, reconstituiu, em filigrana, essa estratégia de afirmação, os figurantes do segmento da elite local que a gizou, bem como os caminhos que seguiu. Ficámos a conhecer esse grupo de caldenses que frequentou em simultâneo o liceu de Leiria e aí cimentou não só cumplicidades entre si como um contacto, que foi marcante, com as instituições e visões da capital do distrito. Acompanhámos, sempre com o guia competente do texto de Luís Nuno Rodrigues, a liderança que esses homens exerceram na Associação Comercial e Industrial das Caldas da Rainha até à conquista da Câmara, em 1924, numa conjuntura politica favorecida pelas fracturas locais e nacionais do velho partido-frente, o Partido Republicano Português. Finalmente, entrámos nos bastidores da operação complexa conduzida por este grupo - a que Luís Nuno Rodrigues chamou “regionalista” - com o objectivo de recuperar a influência ameaçada com a interferência politica oriunda de alguns sectores da Ditadura Militar instaurada na sequência do 28 de Maio de 1926.
Creio ter dado um contributo, dez anos depois desta investigação, para conhecer a acção posterior dos regionalistas caldenses, até à década de 1940. O estudo que realizei a propósito da organização da Grande Exposição do Duplo Centenário mostra que o processo de criação do Museu não ficou encerrado em 1934, e que os regionalistas só verdadeiramente viram consumados os seus objectivos com a oportunidade que foi oferecida às Caldas da Rainha de receber, em 1940, a Exposição da Província da Estremadura, neste caso substituindo Lisboa, que como capital do País acolhia a Exposição Nacional.
Talvez se tivesse justificado, por isso, trazer a actual exposição do Museu Malhoa até aos anos 40, para nela integrar a história da instituição até à inauguração do edifício, de forma a fazer luz sobre a história politica, isto é sobre a história das relações tecidas no final dos anos 30 em volta da criação das províncias administrativas, da extinção dos distritos e do processo de aproximação/integração das Caldas no que hoje designamos por área metropolitana de Lisboa.
Mas a questão principal que devemos colocar à investigação histórica é: como se explica o surto do chamado “regionalismo” nos anos 20, o seu sucesso político fulgurante e duradouro (pelo menos até à década de 40)? Algumas resposta já foram dadas. Trata-se de um movimento que tira força da crise do sistema politico-partidário da República e se cola à reivindicação periferia-centro. A crise dos partidos (no caso da Primeira República Portuguesa, a crise do "partido-frente") atinge o modelo de mediação entre as instâncias locais e centrais do Estado e da República. Pelo lado das elites locais, acentua-se a convicção de que os factores de crise são importados do centro do sistema, de que existem forças suficientes na periferia para propulsionar uma regeneração do País, se não fora a impotência ou turbulência que paralisa o centro e impende sobre a própria periferia.
No caso das Caldas, há ainda um aspecto particular, para o qual chamei a atenção num texto distante (1987), produzido sobre as primeiras eleições republicanas, efectuadas a 28 de Maio de 1911.
Caldas da Rainha tinha sido, na segunda metade do século XIX, sede de um círculo uninominal. O círculo das Caldas abrangia então os actuais concelhos de Caldas, Óbidos e Peniche e elegia um único deputado. Foi esse o quadro em que se processou a relação política das elites locais com o sistema político, e no qual decorreu um singular adensamento dos factores de polarização regional e de dinamismo institucional urbano no último quartel do século XX.
Sucede porém que a República extinguiu os círculos uninominais, dividindo o território continental e insular em 51 círculos plurinominais, praticando-se em 48 deles voto limitado (nos 2 círculos de Lisboa e no do Porto aplicava-se o método de Hondt). O voto limitado constituía uma modalidade de acesso das minorias à eleição: o boletim de voto devia conter um número de candidatos inferior ao dos deputados a eleger (3 para 4, ou 2 para 3).
Um desses novos círculos era o nº 30, que tinha por sede Alcobaça e abrangia, além deste concelho, os de Pombal, Nazaré, Óbidos, Peniche e Caldas da Rainha. Atente-se no significado da mudança: a engenharia eleitoral produzia um círculo descontínuo; Pombal (que também tinha sido sede de um círculo uninominal) e Caldas perdiam estatuto face a Alcobaça, agora sede um círculo de 4 deputados.
Esta operação dividiu irremediavelmente a elite politica caldense, ou seja, dividiu o "partido-frente" da República. Os republicanos históricos ou recém-convertidos agruparam-se num Centro Republicano, o Centro Miguel Bombarda, para discutir a situação e deliberaram apresentar uma lista própria, alternativa à lista oficial do PRP, às eleições de 1911. À cabeça dessa lista, figurava o nome de um médico, Leão Magno Azedo, nascido nas Caldas e membro da equipa governativa do Ministro do Interior do Governo Provisório, António José de Almeida. Viria a ser eleito.
Esta atitude, obrigando à realização de actos eleitorais no círculo 30 (um dos poucos em se realizaram, porque a lei os dispensava nos círculos onde não concorresse mais do que uma lista), representava em certa medida uma tentativa de recuperação do protagonismo perdido com a extinção círculo uninominal.
A circunstância de Caldas da Rainha protagonizar um lance dasafiador da direcção do Partido que acabara de tomar o Estado sugere ainda um inconformismo caldense com o lugar que, em termos regionais, o novo poder lhe pretenderia atribuir. Parte das elites tradicionais das Caldas teme, provavelmente com algum fundamento, que a República olhe com desconfiança uma área que aparecia como "coutada" monárquica, colocada sob a "protecção da realeza" desde "tempos imemoriais". Receia uma reforma administrativa e judicial que a despromova. Receia o desmantelamento da instituição que lhe traz prestígio e riqueza - o Hospital Termal. O facto bem palpável de a sede do círculo eleitoral nº 30 ter sido atribuída a Alcobaça, temos de convir, não augurava nada de bom.
Os resultados da votação de 28 de Maio foram eloquentes:
[Clique na imagem para aumentar]
A lista da Oposição obteve uma votação tal que, embora não tendo ganho a eleição, se o apuramento se fizesse pelo método de Hondt, os quatro deputados do círculo seriam divididos em partes iguais pelas duas listas. Nos concelhos de Caldas e Pombal, o sufrágio foi desfavorável à lista apresentada pelo Directório do Partido.
É provavelmente aqui que se encontra o primeiro sinal de uma segmentação da elite politica caldense que nos anos 20 teve como protagonista a geração regionalista.

2 comentários:

Isabel X disse...

Agradeço o que diz sobre o catálogo e a abordagem da exposição que o mesmo reflecte. Mesmo sem a ter visto, o João tem uma ideia clara dos critérios adoptados.

Aceito a crítica implícita (e explícita) e lamento não ter podido contar, ao menos um pouco, com a sua orientação para o estudo efectuado, algo que o Dr. Luís Nuno Rodrigues (suponho) contou na exposição sobre António Montez. Aproveito para agradecer a participação do Dr. Luís Nuno neste catálogo, aceitando o convite do PH.

Aa ideias que aqui traz em alternativa são mais do que pertinentes e é pena, isso sim, que o João não seja elástico, bem como o seu tempo, pois poderia ter colaborado no catálogo com um texto integrador, na linha que aqui apresenta, e que tão bem esclarece a situação específica das Caldas.

O PH tinha projectado uma exposição sobre o período da I República e foi amavelmente convidado pela directora do Museu José Malhoa, Dra. Matilde Couto, para a fazer no Museu, como parte do projecto apoiado pelas Comemorações Oficiais do Centenário da República. Esse projecto privilegiava a I República e a ideia da criação do Museu José Malhoa durante esse período.

Consigo aprende-se sempre, João. Fico-lhe agradecida pela sinceridade da avaliação que faz. Detesto palavras de circunstância e sei-o incapaz delas. É muito mais dignificante merecer uma critica que aponte alternativas, como é o caso, do que outro tipo de atitude, incluindo o mero silêncio.

Bem sei que há hiatos por resolver; tenho sempre afirmado isso. Aliás, gostaria muito de poder prosseguir a investigação que realizei até agora.

O facto de o João dedicar a sua atenção ao tema fez-me pensar de um modo novo e refazer algumas ideias.

De qualquer modo, e em defesa da exposição, penso que nunca tinha havido outra nas Caldas que se debruçasse sobre a I República, e que contando muito (também)com os estudos anteriormente realizados pelo João, tivesse proposto aprendizagens sobre esse período mal conhecido da maioria das pessoas, por ainda ter sido pouco divulgado (em termos expositivos, pelo menos).

Destaco também a cronologia da Dra. Joana Tornada, membro do PH, que muito trabalhou comigo, relativa ao período da I República. Outras cronologias já integravam outras obras do PH (ou o livro "Terra de Águas), nomeadamente a partir de 1927, mas julgo que nenhuma especificamente deste período, ou pelo menos, tão circunstanciada.

Não deixe de ir ver a exposição, João! O convite é extensivo a outras pessoas frequentadoras do blogue oqueeuandei.

- Isabel X -

João B. Serra disse...

O meu comentário pretende reflectir a partir de uma leitura cuidada do catálogo e não tem nenhum objectivo de desmerecer ou criticar o que foi feito. A reflexão é suscitada por um volume importante de investigação condensada e dimensionada para uma obra. Sem esta, aquela nem sequer poderia ser formulada. A hipótese que aqui lanço só ganha acuidade exactamente porque a Isabel e outros investigadores colocaram problemas e tentaram descortinar um fio condutor inteligível na narrativa que escreveram. Verei certamente a exposição e voltarei então a outras questões, que aqui não têm cabimento. Guardo para essa altura os parabéns pelo que de novo for trazido ao conhecimento da história caldense do século XX.