sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Berlengas

Raúl Brandão, nascido na Foz do Douro em 1867, é um dos escritores portugueses que melhor expressou o apelo profundo do mar e o fascínio das ilhas. No Guia de Portugal, esse extraordinário projecto de Raúl Proença, um novo Lusíadas escrito a várias mãos, pelos mais qualificados intelectuais da época (1924), descreveu assim A Berlenga.

Desembarca-se na pequena praia ao fundo do carreiro do Mosteiro, tendo em frente as escarpas vermelhas da ilha, que emergem da água verde, grossa e transparente como um vidro. Ao pôr do sol todo este granito enferrujado escorre sangue de alto abaixo, até à água que desvenda os fundos mágicos através duma lente esverdeada. Subimos um carreirinho a pique até às ruínas do pequeno eremitério de frades jerónimos, suspenso do azul e perdido naquela imensa solidão.É um sítio poético, que nos faz sismar e nos penetra de encanto. Quem esgaravata nas pedras, ainda encontra uma data apagada - amor, morte. sofrimento, tudo reduzido a cisco... Mas quem ergue os olhos, só encontra deslumbramento e vida: bóia o sol na atmosfera límpida e sem um átomo de poeira; cerca-nos o azul em ondas magnéticas, e lá para diante vagas sobre vagas. Ali em baixo, a nossos pés, avista-se uma praia solitária, um côncavo do tamanho da mão onde nunca entrou o sol. Fria e pálida entre grandes rochas negras e cenográficas, que emergem do mar e se recortam no azul, transem-nos como um sítio misterioso que o homem visse pela primeira vez. Aquela água verde, prisioneira entre escarpas altíssimas, dá-nos uma sensação glacial e estranha...
(...) visita ao Furado, espécie de túnel marinho de 70 metros de comprimento, a Sudoeste da ilha. Um entalhe nos paredões de granito, e a onda leva o barco pelo corredor estreito sobre algas com grandes pinceladas de branco nos cabelos. É uma vida escorregadia e verde, uma luz glauca e movediça, um verde líquido, com transparências doiradas á superfície. Os filamentos verdes enrodilham-se, flutuam ao lume de água, ou repousam como braços inertes . Mas se vê: uma espuma e um fio de azul estremecendo ao cimo da babugem. Nos penedos negros chapadas mais escuras com estrias veremelhas e buracos que se afundam lá para dentro, para a espessura incógnita. Na penumbra, a luz que vem de fora reflecte em ondas nas nuralhas o movimento incessante das águas. Claridade ao longe, mais luz, e desemboca-se numa esmeralda engastada em vermelho, numa praia de areia intacta e fina, entre paredões temerosos cor de ferrugem. Em cima a nesga do ceú. Dum lado, o poço entreabre-se e vê-se o mar num rasgão, para lá das rochas que lhe defendem a entrada.Ilumina-o uma luz fria de fiorde, uma luz morta de paisagem lunar - uma luz que é silêncio ao mesmo tempo, serena e indiferente como este espírito que habita a ilha, belo, feminino, solitário e perverso. Água imóvel e silêncio transido.




As ilustrações são da autoria do arquitecto Paulino Montês. Natural de Peniche, onde nasceu nos finais do século XIX, Paulino Montês tinha família nas Caldas da Rainha e foi responsável por diversos estudos e planos urbanísticos da cidade. Estas aguarelas, dos anos 30, pertencem á colecção do Museu de José Malhoa

3 comentários:

Maria disse...

Esta ilha é uma maravilha!
Obrigada pelo post.

Isabel X disse...

Inultrapassável de tão poética, sentida, fotográfica, a descrição que Raul Brandão faz da Berlenga, ilha misteriosa...

A obra de Raul Proença tem um valor único, inigualável também, exactamente por coligir dos melhores textos que se têm escrito sobre cada trecho de paisagem, cada sítio, de Portugal.

Lembrei-me logo de um suplemento da Gazeta das Caldas, promovido pela Loja 107, subordinado ao tema "Um livro da minha vida", ou algo parecido. O João escolheu o "Guia de Portugal" de Raul Proença. Já é paixão antiga, portanto. Lembro-me de que no seu texto contava, num trecho transbordante de ternura, como fazia jogos sobre os lugares que visitava nos passeios de família (com "as minhas raparigas" - que expressão linda!) a partir do Guia de Portugal.

As imagens de Paulino Montês, cheias de luz, maravilhosas, também.

Tudo isto faz saudades de ir à Berlenga, onde já tive a felicidade de estar alguns dias, vivendo numa daquelas (poucas) casinhas que foram construídas, as únicas autorizadas a permanecer no local, por ser paisagem protegida.

Temos que votar na Berlenga para "Maravilha de Portugal"!

- Isabel X -

Jorge Gonçalves disse...

Voltarei às Berlengas no próximo Sábado, se tudo correr como planeado. Vou "mostrá-la" à minha irmã (que não era ainda nascida quando os meus Pais me levaram à ilha pela primeira vez) e ao meu cunhado e sobrinhos ilhéus da Madeira. Confesso que não sabia que Raúl Brandão (como quem aprendi sobretudo a conhecer e admirar a "minha" Foz, a d'"Os Pescadores") tinha escrito também sobre a Berlenga. Sempre a aprender. Thanks. Um Abraço.
Jorge Gonçalves