sexta-feira, 6 de agosto de 2010

As palavras têm sexo

Subamos à cabeça do cónego.
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo coisa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua cabeça que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cónego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjectivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que, ainda assim, não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjectivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...
- Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha memoria psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavras têm sexo.
- Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.
- Confesso que não.
Pois entre aqui também na cabeça do cónego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem e que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cónego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjectivo, que não lhe aparece:
“Vem do Líbano [esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda a casta de pombos...
- Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhes façais saber que estou enferma de amor...”].
E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: “Julieta é o sol... ergue-te lindo sol”. Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o taler ou o dólar, o florim ou a libra, que é tudo o mesmo dinheiro.
Portanto vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjectivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.

Machado de Assis, “O Cónego ou Metafísica do Estilo”. In Várias Histórias. Rio de Janeiro/Paris, Livraria Garnier. P. 276-277.

8 comentários:

Isabel X disse...

Senti uma singular felicidade ao ler este texto: é inteligente, clarividente,vibrante de interpretação. Permitiu-me descobrir algo fundamental, passar a ver mais do que antes via.

Adoro Machado de Assis, autor que escreveu no século XIX já com o conhecimento que a Psicologia descobre agora. Até sobre o cérebro humano.
Não lhe conhecia este livro. O João Serra acha sempre mais do que eu achara antes. Ainda bem que dá aqui a conhecer o que achou.

A ideia de as palavras terem sexo, amarem-se e buscarem-se naquilo que escrevemos é uma realidade que me fascina tanto que, pelo menos neste momento, me reconcilia inteiramente com a vida.

- Isabel X -

Cláudia disse...

Comentar Machado de Asssis é prestar contas à Língua Portuguesa.
Onde mora o perdão para o que fazem no ensino brasileiro? Nascido da mais nobre estirpe através, da educação dos Jesuítas evoluindo à notada Academia de Letras cujo patrono Machado de Assis, de tanto mérito à causa, lastimaria a ineficiência dos dias atuais. Bem sabido nos é, de que vergonhosamente foram recolhidos milhares de cartilhas de formação infantil pelo MEC, por não terem a mínina condição de serem lidas, cujos textos literários de baixo calão comprometia a inocência da tenra idade.
Poderíamos atestar as pedagogias, franquear necessidades, ou vigores de uma sociedade nada vigilante...
Mas, se o perdão tivera morada este seria nas casas editoriais, desarmados crivos e armados embustes a integridade da língua portuguesa. A falta de qualidade não nos ataca, mas ao rebento. Não nos substima, mas perde a força. Não nos violenta, mas desapropia paixões.
A dinâmica das letras sem compromisso ético perde a essência, o encanto, a finalidade educativa. Com selos de qualidade a Literatura deveria ser tarjada. Uma substância limpa, coerente e precisa ao despertar a luz do conhecimento e instrumento de valor.
Portugal deveria lançar o selo Machado de Assis no Brasil, e cobrar de cadeira atitudes em relação a língua que leva seu nome Portuguesa.

Isabel X disse...

Eis um belíssimo e vigoroso manifesto que subscrevo inteiramente, Cláudia!
É um gosto lê-la!

- Isabel X -

Cláudia disse...

Obrigada Isabel X,tal é a seriedade da temática literária como sinal a dinâmica que as pessoas buscam atropelando convenções, também o sintoma de grandes editoras espanholas a exemplo a Ed. Moderna com inventimentos de apostilas objetivando 100% do mercado de ensino público brasileiro, tomando de assalto o coração da língua portuguesa.

A exemplo do pacto Lusófono que já é uma realidade, talvez fosse possível um Selo de Qualidade Literária, atestando, níveis de especificações, promovendo a cultura literária, inclusive portuguesa, ditando regras no país. Entendo que existem excelentes escritores brasileiros, mas nada é requisitado para publicar-se uma obra, ou abrir uma Academia de Letras, no caso seriam casas do "Saber Português" o que implica na soberania deste idioma.
O que Portugal pode? No Brasil, Machado de Assis diz que apenas Portugal, pode tudo! Segundo ele além de Sexo, as palavras tem origem.

Isabel X disse...

Aquilo de que fala, Cláudia, em relação ao que se passa no Brasil, é inteiramente novo para mim.

Quanto a Machado de Assis ter dito que a Portugal cabia um papel fundamental, por ser a origem da língua dos dois países - Portugal e Brasil - acredito que sim, mas não vejo como.

O que vejo é que quem crê em Portugal não são os portugueses que por cá habitam, mas aqueles que a História deixou por esse mundo fora.

Nós por cá estamos tão cansados, Cláudia...

E isto digo eu que gosto de Portugal!

- Isabel X -

Cláudia disse...

Isabel X, não seria o seu tal cansaço, mas aos seus, em blogs mundo afora abandonados, sinal ao desencontro, sem anseios ou suspiros, que bem conhecem o bom gosto de vossa língua. Há, Isabel, todos os tempos são difíceis.
O que seriam das cores sem as tintas? E, estas seriam invenções do homem para imitar à Deus. Pois, há de vos convir, que o prisma é obra da natureza e a palheta do homem.
Ao escrever tentamos dar vozes aos anjos, por que somente anjos não carecem de perfeição, pois sendo estes a perfeição, assim a escrita o é.
Vou além. Sendo Deus o verbo, então o verbo é o sopro divino, e como tal sua conjugação tenha de ser divinal. E, apenas entre todas, a Língua Portuguesa tivera conjugado ao Mais-que-perfeito, como não fora esta língua um Sacramento?
Vossa força está na língua portuguesa, ferramenta contra o cansaço.

Isabel X disse...

Declaro-me profundamente emocionada pelas suas palavras, pelos sentimentos que se adivinham por trás delas, que em si as modelam, Cláudia! Pela beleza que nelas reside e delas irradia!

Impressiona-me muito encontrar alguém que pensa e sente assim, tão em sintonia comigo, uma voz vinda do outro lado do Atlântico, tão próxima, aqui no blogue do João Serra.

E o mundo fica melhor!

- Isabel X -

Cláudia disse...

Isabel, ao garimparmos conhecimento a luz de idéias ou, poesias, busca-se percepção, sem vaidades, para um mundo melhor. Este Blog, por, Prof. João Serra, oferece uma linha ao pensamento, questioná-lo, até contrariá-lo. Reconheçamos; Raros, expõe-se ao crivo do que pensam ou não. Além de que, a verdade é digna de um espetáculo, e cada qual nesta andança, sabe admirar este padrão. Reconhecendo a peregrinação por vertentes ao que possa traduzir um olhar e repartir experiências. No mérito, a justa medida em que reflete sua porção de responsabilidade, e nos desafia a tal. E se, por ventura agravantes, que sejam nossas capacidades, que o Sr. Rui, tanto admira. E assuntos como os da Língua Portuguesa, veja o “Acordo Ortográfico”. Torno a questão de especificações na escrita, e retratar um perdão ao não reivindicar Camões.
Isabel é como nos alimentos ou nos produtos tecnológicos. Insisto, Portugal tem que lançar e cobrar a qualidade da língua escrita nos livros. Seria um bem de ação ou, como vos quiser, uma benção. O mundo está inédito neste quesito da qualidade textual, veja o tamanho da importância, implicando consciência e compromisso em todos os países de língua portuguesa, imprimindo o testemunho no que tange a honra educativa na formação de indivíduos. Como é possível ter paz sendo cúmplices da ignorância?

" A paz trazia aos homens o desejo de ir além. Descobriam por que rezavam e, rezavam por que descobriam. Estes que achavam descobertos eram cobertos de penas, flores e bichos. E feito bichos, encobriam-se da natureza por que não sabiam rezar".