sábado, 31 de janeiro de 2009

Fim de ciclo

Terminou agora um ciclo da vida dos hospitais caldenses, iniciado na década de 70, com a constituição do Centro Hospitalar das Caldas da Rainha. Associando a vertente moderna, a do Hospital Distrital, a uma vertente tradicional, única no país, a do Hospital Termal, esta instituição afirmou-se na região como uma referência na prestação de cuidados de saúde, onde atingiu níveis de qualidade reconhecida.
A articulação entre os dois hospitais não só constitui uma solução pioneira, que fez exemplo, como projectou o Centro Hospitalar e as Caldas da Rainha noutras dimensões sociais e culturais.
Alguns, mais desatentos, poderão ignorar ou desvalorizar o papel que, por via do seu par termal, no campo da cultura, o Centro Hospitalar desempenhou. Mas estão equivocados. Esse papel foi imenso. Nestas quase quatro décadas, a projecção cultural das Caldas e da região deve ao Hospital Termal uma importante quota, aliás a diversos títulos estratégica. Da Casa da Cultura ao Teatro da Rainha, da associação Vicente ao Património Histórico-Grupo de Estudos, do Cine-Clube à Associação dos Artesãos, foi com o apoio, a cedência de espaços e o apoio logístico do Centro Hospitalar que estas organizações singraram. O ensino, outro sector que beneficiou, e de que maneira, com a disponibilidade do edificado termal: o ensino secundário liceal instalou-se nos Pavilhões do Parque, como ali funcionou a Escola do Magistério, a Escola Superior de Educação e a Escola Técnica Empresarial; o ensino da dança foi uma das valências acolhidas na Casa da Cultura. Quantas exposições, concertos, espectáculos, congressos, simposios, feiras foi em instalações geridas pelo Centro Hospitalar que se desenrolaram.
Acompanhei de perto esta actividade, desde 1985, ano em que, perfazendo-se 5 séculos sobre a fundação do Hospital Termal, a história local recebeu um novo impulso, de que beneficiei directamente. Os resultados estão à vista: desde então, a produção de estudos históricos e os trabalhos de levantamento e pesquisa patrimonial nas Caldas deram um salto extraordinário. O principal resultado dessa operação foi a criação de um novo Museu, com um novo conceito e percurso museológico, o Museu do Hospital e das Caldas. Sou amigo pessoal e admirador dos dois últimos directores, médicos ilustres e personalidades de visão larga, apoiada numa sólida formação cultural. Na última década exerci as funções (em larga medida simbólicas, mas espero que não inúteis) de Presidente do Conselho Consultivo do Centro Hospitalar das Caldas da Rainha. Cessam hoje, com o fim desta última instituição.
Uma portaria do Ministério da Saúde, datada de 22 de Janeiro, determinou:
São extintos o Centro Hospitalar das Caldas da Rainha, o Hospital de Alcobaça Bernardino Lopes de Oliveira e o Hospital de São Pedro Gonçalves Telmo — Peniche, sucedendo o CHON na universalidade dos seus direitos e obrigações.
Esclareça-se: o "CHON" é o Centro Hospitalar Oeste Norte.
Não sei o que vai acontecer ao Hospital Termal das Caldas da Rainha. Esta portaria comete a afronta de nada sobre isso dizer. Afronta à continuidade de uma instituição que durante cinco séculos exerceu a sua actividade num quadro assistencial e orgânico sem rupturas ou interrupções.
Confesso que me sinto muito desconfortável quanto ao futuro do Hospital Termal e do termalismo das Caldas. Por uma simples razão: foi extinto o organismo que nas últimas décadas com convicção, coragem, determinação, respeito, saber e visão, esteve sempre na primeira linha da sua defesa e da sua valorização. Esse organismo foi o Centro Hospitalar das Caldas da Rainha e os seus directores, Mário Gualdino Gonçalves e Vasco de Noronha Trancoso.


sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

República

Todos percebemos ontem que atingimos um momento crítico da vida política portuguesa. A intervenção dos senadores - Freitas do Amaral e Jorge Sampaio - a nota da Procuradoria, o dramatismo da conferência de imprensa do Primeiro Ministro, imediatamente antes da reunião com o Presidente,  são sinais claros.
Espero que os homens - e as instituições - saibam encontrar, acordar e utilizar os instrumentos adequados à defesa da República.

O caso: as fontes e os factos

Para não correr o risco de confundir origens - duvidosas ou incertas com credíveis - socorro-me das "Notas para a Comunicação Social" dimanadas da Procuradoria Geral da República. Até ao momento, foram emitidas duas, uma a 10 e outra a 29 de Janeiro.
Escreve-se da Nota de 10 de Janeiro:
1º - O chamado “Caso Freeport” iniciou-se em 2004 no Tribunal do Montijo e teve como origem uma denúncia anónima;
2º - O processo encontra-se presentemente no Departamento Central de Investigação e Acção Penal e as investigações aguardam o cumprimento de uma carta rogatória remetida para Inglaterra em 2005 e a realização de perícias contabilísticas pedidas ao Departamento competente da Polícia Judiciária;
5º -  Os autos não contêm, até este momento, indícios juridicamente relevantes que mostrem o envolvimento de qualquer ministro do Governo português actual ou de Governos anteriores em eventuais crimes de corrupção ou quaisquer outros.
Na Nota de 29 de Janeiro, escreve-se:
1º O processo relativo ao “Caso Freeport” encontra-se a ser investigado pelo Departamento Central de Investigação e Acção Penal desde Setembro de 2008;
6º A carta rogatória inglesa agora divulgada pela Comunicação Social, foi recebida no Departamento Central de Investigação e Acção Penal em 19 de Janeiro do corrente ano e irá ser cumprida;
7º Os alegados factos que a Polícia inglesa utiliza para colocar sob investigação cidadãos portugueses são aqueles que lhe foram transmitidos em 2005 com base numa denúncia anónima, numa fase embrionária da investigação, contendo hipóteses que até hoje não foi possível confirmar, pelo que não há suspeitas fundadas.
Podemos então apurar os seguintes factos:
1- Na origem do caso está uma denúncia anónima;
2 - Essa denúncia anónima data de 2004 e deu entrada no Tribunal do Montijo;
3 - Na fase embrionária da investigação (presumivelmente ainda em 2004) foram criadas hipóteses;
4 - Em 2005 as entidades que conduzem a investigação enviaram para Inglaterra uma carta rogatória;
5- Essa carta rogatória ainda não foi cumprida pelas autoridades inglesas;
6- Em Setembro de 2008, ocupou-se do caso o Departamento Central de Investigação e Acção Penal;
7- Em 19 de Janeiro de 2009 este organismo recebeu uma carta rogatória vinda de Inglaterra.
8 - A Procuradoria Geral da República assegura que não há suspeitas fundadas nem foram apurados indícios juridicamente relevantes que confirmem a denuncia anónima de 2004.

Seja qual for a interpretação que cada um faça deste caso, os factos aí estão com uma crueza indesmentível: uma denuncia anónima de 2004 produz efeitos gravíssimos em 2009, sem que se tenham cumprido, entretanto, procedimentos básicos de investigação nem tenham sido justificadas quaisquer suspeitas. 
É esta a investigação criminal que a justiça garante aos cidadãos?

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

31 de Janeiro no Montijo

Arrancam as comemorações centenárias da República no Montijo, já no sábado, 31 de Janeiro. A República chegou mais cedo a Aldeia Galega.
Tema da conferência: "100 anos depois: desafios para uma República moderna".

Conversas no Arquivo

A Leiria que se observa, recupera e debate no Arquivo Distrital ganha novos contornos todos os meses, com a participação de historiadores, arquivistas, professores e outros amigos do saber.
Desta vez (ontem), o contributo base para o encontro veio de Alda Mourão e Catarina Menezes, ambas docentes na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais. Catarina Menezes percorreu os caminhos "internos" da imprensa regional ao longo da segunda metade do século XIX, com base numa amostra de periódicos locais. Alda Mourão fez um retrato social de Leiria no mesmo período usando como fonte a publicidade inserta na imprensa local. Ambas fizeram falar os jornais locais, fonte imprescindível para a pesquisa histórica do século XIX em diante.
Mas o convívio prolongou-se para lá do horário de fim de tarde destas sessões de "Uma Bica no Arquivo Distrital" e, sempre com o Dr. Acácio de Sousa como anfitrião, ancorou-se no centro histórico leiriense, em volta de uma mesa comprida e de novos temas, tão vivos e estimulantes como os anteriores. Uma chuva miudinha seguiu os nossos passos, acomodando projectos e surpresas.

Património Bordalos

O Ministro da Cultura entregou ao Museu do Azulejo a condução do processo aberto na sequência de carta enviada pela associação "Património Histórico-Grupo de Estudos" - que pediu a intervenção do Ministério na salvaguarda do acervo patrimonial remanescente das antigas fábricas de Faianças das Caldas da Rainha e Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Lda.
Três breves comentários a este propósito:
1º - A carta da associação PH foi enviada a 29 de Dezembro. O respeito pela iniciativa de uma entidade como o PH deveria ter feito ponderar o deputado António Galamba sobre a oportunidade da sua intervenção de 20 de Janeiro. Se uma entidade respeitável e competente entendera, sem qualquer publicidade, desencadear medidas para salvaguarda patrimonial, a sobreposição partidária é desnecessária e desajustada.
2º - A carta da associação PH, aliás redigida após consultas alargadas a diversas personalidades da área dos museus, foi correctamente endereçada e concordante com a legislação em vigor.
3º - Registe-se, por fim, que foi o Museu do Azulejo o escolhido para tratar deste assunto. De facto, o Museu de Cerâmica não tomou em devido tempo, como evidentemente lhe competia e era sua elementar obrigação, a iniciativa de organizar o dossiê de classificação do valioso património histórico dos Bordalos. 

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Homenagem a Ferreira da Silva

No próximo dia 1, Domingo, às 16 horas, no Pequeno Auditório do Centro Cultural e de Congressos das Caldas da Rainha. Exibição do documentário "Gravura, esta mútua aprendizagem" de Jorge Silva Melo. Mesa-redonda sobre os caminhos da cerâmica contemporânea com Paulo Henriques, Querubim Lapa, Eduardo Nery, Ferreira da Silva e João Serra (moderador). A obra de Ferreira da Silva em imagens (João Serra, Margarida Araújo). Inauguração de obra de Ferreira da Silva no foyer do CCC.

A caminho de Peniche (Agosto de 1919)

Continuação da narrativa de viagem a Peniche e Berlengas efectuada por Raúl Brandão, em Agosto de 1919. De Óbidos a Peniche, pela Serra d'El Rei, 3 horas! Peniche "ocupada" pelas fábricas de conservas que ali se instalaram no princípio do século, chegando a atingir as duas dezenas; Peniche desconjuntada por políticas municipais sem gosto nem visão, deixou ao nosso visitante uma impressão de horror contrariada pelo espectáculo do mar em confronto com as fragas.

Peniche é horrível. Por toda a parte por onde têm passado os homens dos municípios - por toda  a parte transformaram as terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco nos jardins. Degradaram tudo. Peniche, que foi uma fortificação e um ninho de piratas isolado e feroz, à espreita do naufrágio e da presa, cheira que tomba, e só conserva duas coisas interessantes: o cabo (hão-de deitá-lo abaixo) com a Senhora dos Remédios, e a esplanada, que é um esplêndido cenário para o último acto da Tosca, e um ponto de vista admirável para o sul - grande traço indistinto e roxo, com um ou outro casal, uma ou outra aldeia dispersa e sem nome. Mas Peniche é sobretudo horrível para mim porque é o tipo de pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a caserna da sardinha, onde impera o Fialho do Algarve. Só me ficou uma impressão grata. Perdi-me. Fui por uma rua fora e entrei por acaso num rés-do-chão, escola de rendeiras. Nenhuma teria mais de dez anos. Outras ainda menos. Algumas com dois palmos mal sabiam falar. E todas aquelas mulherzinhas, sentadas no chão e debruçadas sobre os bilros e os piques, levantaram a cabeça e puseram-se a rir para mim... Elas hão-de ser mulheres, eu hei-de ser mais velho do que sou, e não me passa a impressão de ingenuidade e de pureza, dos olhos a sorrir e dos biquitos abertos cor-de-rosa...
Daqui ao cabo é meia légua através de muros, vinhas e casebres. Quero olhar para as Berlengas de mais perto. Desde que as vi fiquei cismático... A Senhora dos Remédios é escavada na rocha subterrânea, junto a fragas enormes que mal se sustentam de pé e que os vagalhões assaltam formidavelmente. Que voz lá no fundo, e que esplendor de luz nesta mole negra e cenográfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspecto estranho de torres medievais, com água esverdeada a escavá-las e a roê-las nos antros e cavernas, que ficam a cinquenta metros de profundidade e que repercutem ecos, ameaças, uivos e lamentos de desespero, súplicas dramáticas! É o Castelo do Diabo... E no fundo do horizonte sempre aquelas três nuvens pousadas sobre o mar, chamando por mim. Atraem-me e fascinam-me.

Raul Brandão, Os Pescadores, Lisboa, Estúdios Cor, 1957. p. 122-123.

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Recessão ou depressão?

Provavelmente já serão poucos os indicadores de saúde económica que resistem e não sabemos por quanto tempo ainda. É cada vez mais claro que o sistema financeiro entrou em colapso total e arrastou irremediavelmente a economia. Falar em recessão será dentro em pouco recorrer a um eufemismo tão cândido como era há três meses falar de estagnação a respeito da crise que todos os dias nos acordava com más notícias.
Estamos a entrar - já entrámos - numa depressão económica de que não sabemos quando sairemos. Talvez fosse oportuno começar a falar de austeridade, de cortes selectivos de despesa, de reorientação do consumo, em vez de supormos que a injecção de crédito no sistema bancário pode estancar o caminho descendente.
Se o deve e haver nacional há muito que deixava perceber que vivíamos acima das nossas possibilidades, esta não é altura para prolongar a ilusão.
O discurso da posse do Presidente da América foi um discurso mais próximo de Churchill dos tempos de Guerra do que das novas fronteiras de Kennedy.
De facto alguém tem de prometer "sangue, suor e lágrimas" e propor-se seguir em frente com esse programa de sacrifício e solidariedade.

O cálculo eleitoral

Pedro Magalhães vem, no Público, de hoje, reintroduzir o tema da governabilidade num cenário de vitória do PS sem maioria absoluta. De facto o PS perdeu a maioria absoluta em intenções de voto no auge do embate das suas políticas reformistas com as corporações e não a recuperou. A sua erosão eleitoral à esquerda criou um espaço onde se instalou Manuel Alegre.
O Congresso do CDS/PP trouxe o debate político para o terreno dos cenários governativos. Portas ofereceu-se para viabilizar um governo minoritário do PS, pretendendo com isso prevenir uma inclinação do Governo socialista para a sua esquerda. A hipótese que o CSD/PP queria desta forma evitar é precisamente aquela que Manuel Alegre quer garantir.
Mas sejamos realistas. O cenário mais pesado que estará em cima da mesa no caso de uma vitória do PS sem maioria absoluta não é o da aliança à direita ou à esquerda, é o da aliança ao centro. É para aí que a crise económica apontará, as medidas drásticas que então se imporão e que exigem um governo com ampla maioria. É para aí, para o bloco central, que o Presidente, feitas as contas, se inclinará também. Não é isso que significa a escolha de Manuela Ferreira Leite para a liderança do PSD?

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

"Ponto G"

Moção "PS, a Força da Mudança", que tem como primeiro subscritor José Sócrates. Secção III, Linhas Programáticas, capítulo 4, Democracia, alínea G, O apoio à cultura.
Assim, sem mais:
A sociedade aberta e moderna que o PS valoriza tem nas actividades artísticas e no património cultural um eixo muito importante de identidade, cidadania, modernização económica e inovação social. As artes constituem também uma área aliciante para a formação e a inserção profissional dos jovens. O compromisso do PS é também aprofundar as políticas públicas orientadas para a conservação do património, o apoio à criação artística e a democratização do acesso aos bens e actividades culturais. 
Aceitável, como proposta de tema. Aliciante, com boa vontade. Mas alguém se esqueceu de explicar o que se pretende realmente fazer. "Força de Mudança" não pode ser só um (pouco aliciante, aliás) slogan.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Foz do Arelho

Zona da Aberta da Lagoa de Óbidos, hoje de manhã.
O areal da praia da Foz do Arelho diminuiu consideravelmente. As massas de água podem ter estes caprichos - surpresa para uns, ameaça para outros - mas o espectáculo  da natureza, esse não nos deixa indiferentes.

Museu Malhoa


Beneficiando da iniciativa da Liga dos Amigos do Museu de José Malhoa, integrei-me na visita guiada que ontem a Dr.ª Matilde Tomás do Couto, Directora do Museu, realizou. Oportunidade para observar as obras de remodelação, inauguradas a 19 de Dezembro, numa cerimónia  a que não pude comparecer.
O Museu viu retocado o seu look e reformulada a sua colecção permanente e circuito expositivo. Há mais fluidez neste último e mais luz e "espaço" interior. O arquitecto - João Santa Rita - interpretou bem os desafios e defendeu com inteligência as heranças do projecto original de Paulino Montês. O Museu entreabriu-se ao parque, com fenestrações oportunas. Modernizou-se também, nos equipamentos e estruturas.
Uma obra inteiramente justificada com um resultado plenamente conseguido.

sábado, 24 de janeiro de 2009

"Oviamente"

Chamado a intervir no debate sobre a avaliação dos professores, não se fez rogado. Pois se era "o comentador político da Antena um"!
Afinou oviamente a voz e perorou.
A situação é uma complicação, oviamente, se o projecto do PP for aprovado.
Perguntou a jornalista em estúdio: - que pode suceder, então, nesta votação?
O Governo não devia ter deixado a complicação chegar aqui, oviamente. A classe social dos professores está muito mobilizada. Oviamente.
Classe social, complicação, oviamente.
Como explica a dramatização feita pelo líder parlamentar? - insiste a jornalista junto do comentador.
Mas este por quem verdadeiramente se interessa é pelo Ministro Parlamentar que
ainda agora intreviu.
Oviamente. Intreviu. De intrever. Tu intrevaz, ele intreviu.

Mário Soares na Foz do Arelho (3)

Lembro-me bem dessa placa, que alguém fez desaparecer creio que logo a seguir à Guerra Civil de Espanha, aí à volta de 1939 - disse Mário Soares na sua palestra no Inatel, Foz do Arelho, da passada Quinta-Feira.
Referia-se a uma placa cravada no torreão do palacete de Francisco Grandela na Foz do Arelho, onde se assinalava o facto de ali se ter acolhido Afonso Costa para ultimar a redacção da Lei da Separação do Estado das Igrejas (20 de Abril de 1911).
De facto, o palacete foi adquirido em Março de 1940, sendo posteriormente transformado em colónia de férias (Colónia de Férias Marechal Carmona). As obras então efectuadas alteraram a traça original do edifício. Tem pois razão Mário Soares: a placa foi retirada, e não sabemos se destruida, presumivelmente nos anos 1940.
Francisco Maria Sebastião de Lima, escrivão-tabelião do tribunal das Caldas, na altura com cerca de 53 ou 54 anos, terá sido um dos técnicos consultados por Afonso Costa durante a sua estadia na Foz do Arelho. Apesar de ter sido dirigente do Partido Regenerador durante a Monarquia, aderiu à República e era amigo de Francisco Grandela. No princípio de Abril de 1912, Grandela reconverteu a capela do seu palacete em salão para actos de registo civil e conferências educativas. À cerimónia de inauguração da Casa do Povo, assim baptisada de novo a antiga Capela de Santa Matilde, assistiram entre outros, Afonso Costa e Sebastião de Lima.

Mário Soares na Foz do Arelho (2)

SEntre os episódios evocados por Mário Soares na Foz do Arelho, registo o da intervenção do Cardeal Agostino Casaroli, em 1984/1985, no apaziguamento das suas relações crispadas com o cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro.
Na altura, Soares chefiava o IX Governo Constitucional, uma coligação PS-PSD, formado a 9 de Junho de 1983. As tensões com a Igreja podem ser assinaladas em Outubro desse ano, quando D. António Ribeiro fala de “corrupção moral” a propósito dos projectos de legislação sobre o aborto e os campos de nudismo. De facto o Partido Socialista decidira no seu Congresso realizado a 2 de Outubro, contra a vontade de Mário Soares, apresentar uma iniciativa legislativa sobre o aborto. A 6 de Janeiro de 1984, uma pastoral dos bispos classificava tal legislação, a ser posta em vigor, de “iníqua”. A 22, o Cardeal de Lisboa apelou mesmo a uma sanção eleitoral aos partidos que a votassem.
Foi neste ambiente que o Parlamento votou, a 27 de Janeiro, a despenalização do aborto, com os votos favoráveis do PS, PCP, MDP, UEDS, ASDI, Verdes e um deputado do PSD, e contra do PSD, CDS e um deputado do PS. A coligação do governo tremeu. Mota Pinto, líder do PSD e n.º 2 do Governo, afirmou que o PS “não respeitou o espírito da coligação”.
O Presidente, Ramalho Eanes, enviou a lei para Tribunal Constitucional a 27 de Fevereiro. Foi esta aberta que Mário Soares aproveitou para o contra-ataque. Telefonou ao Cardeal Casaroli, que conhecera em 1974, por sugestão de Willy Brandt, no contexto da descolonização, e solicitou-lhe uma audiência com o Papa, João Paulo II. Esta efectivou-se a 4 de Março, permitindo a Mário Soares declarar à saída da audiência que “as relações entre Portugal e a Santa Sé são excelentes”. Baldada fora a tentativa de D. António Ribeiro e do Bispo de Aveiro que tinham partido para Roma dias antes a tentar anular a audiência.
Refira-se que o Tribunal Constitucional deu parecer favorável a 15 de Março e a Lei foi promulgada.
Tempos depois, foi a vez de Casaroli combinar com Soares uma vinda a Portugal, ocasião para um jantar em S. Bento. Deve tratar-se de uma visita efectuada em Março de 1985, registada num documento da Sé de Braga, onde o Cardeal esteve a 23.
Casaroli recomendou a Soares que não deixasse de convidar D. António Ribeiro. As relações entre ambos tinham esfriado totalmente desde o ano anterior. Soares duvidou mesmo que ele comparecesse, mas Casaroli retorquiu: "Deixe isso comigo".
No final do jantar, Casaroli dirigiu-se com o Cardeal de Lisboa, que evidentemente aceitara o convite, junto do Primeiro Ministro, pegou nas mãos de ambos, colocou a do primeiro sobre a do segundo e sentenciou: "Estão feitas as pazes".

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Mário Soares na Foz do Arelho (1)

A convite de Vitor Ramalho, o novo e entusiástico presidente da fundação Inatel, estive na Foz do Arelho para jantar com o Clube Lusitânia e ouvir Mário Soares falar sobre as vicissitudes ao longo do século XX da "Lei da Separação entre o Estado e as Igrejas", de 1911. Referir-me-ei a algumas "revelações" do orador convidado, noutro dia. Agora, queria recordar as circunstâncias em que Mário Soares, então Presidente da República veio à Foz e ao Inatel homenagear Francisco Grandela, em 1994.
A ideia de lembrar a vida e obra de Francisco Grandela partiu do Museu República e Resistência (Câmara de Lisboa) e da associação Património Histórico das Caldas da Rainha. Coordenei uma equipa de investigação para produzir uma exposição (nas Caldas) e uma exposição com um catálogo (em Lisboa). Pedi colaboração ao meu amigo Vasco Trancoso que sabia deter uma pequena colecção de materiais relativos a Grandela. O Vasco propôs-se fazer um livro com as informações que coligira sobre as extensas relações tecidas entre Grandela e a Foz, desde os anos iniciais do século XX até à sua morte, em 1934. Obtive o patrocínio da Junta de Freguesia da Foz do Arelho e preparei a edição.
Manuel Alegre, presença estival na Foz do Arelho, foi quem recomendou se convidasse o Presidente Mário Soares para o lançamento do livro. Soubera da saída iminente do livro pelo próprio Vasco Trancoso e recordou o nexo entre Mário Soares e a Foz (praia onde passou férias entre 1949 e 1964) e a família Grandela. De modo que num dia de Setembro recebi um telefonema do José Manuel dos Santos, assessor para os assuntos culturais do Presidente (e futuro meu colega em Belém, de 1996 a 2006), confirmando a disponibilidade do Presidente e acertando pormenores sobre a sessão.
A Junta de Freguesia da Foz decidiu homenagear o Presidente, inaugurando uma rua com o nome do Pai, João Soares, fundador do Colégio Moderno que teve uma colónia de férias na Foz nos anos 50 e 60. Recordo o curioso episódio da atrapalhação do Presidente da Junta durante a leitura do discurso, em parte devido ao nervosismo da circunstância e em parte devido ao vento que soprava moderado naquela tarde sem núvens. O Presidente da República perante o arrastar do impasse, agarrou nas folhas do discurso, ordenou-as ele próprio, detectou o ponto em que se encontrava o José Páscoa e devolveu-lhe as folhas restantes com um sorriso condescendente.
Na sessão no Inatel - uma sala a abarrotar - os pontos altos foram a leitura do testamento de Francisco de Almeida Grandela, no qual algumas disposições são relativas à Foz do Arelho e o visionamento de um pequeno filme de 1927 onde se pôde ver uma regata de bateiras e um extraordinário baile dentro de água nas margens de uma lagoa banhada pelo pôr-do-sol.
Estávamos a 27 de Setembro. Desde o princípio do mês que as manifestações dos camionistas contra as portagens na Ponte 25 de Abril estavam na ordem do dia. A 23, o Presidente reconheceu publicamente o que designou por direito à indignação. Uma chusma de jornalistas acorreu à Foz do Arelho em busca de novas declarações. O lançamento do livro do Vasco passou para 2º plano. O fim da década do "cavaquismo" tinha começado.

27 de Setembro de 1994: Inatel da Foz do Arelho
Da esquerda para a direita: José Luis Lalanda Ribeiro (sentado), José Páscoa, João Serra, Vasco Trancoso, Presidente da República, Daisy Grandela, Rosa Maria.

27 de Setembro de 1994: Inatel da Foz do Arelho
Isabel Xavier (Património Histórico) lê testamento de Francisco Grandela

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

República

Alguém sublinhava ontem: aquela cerimónia, da investidura de Barack Obama,  foi uma celebração republicana como há muito se não via.
É certo. A República teve um dos mais expressivos momentos de consagração da sua história porque o resultado da escolha popular americana sublinha de forma eloquente uma impossibilidade do princípio monárquico do preenchimento da chefia do Estado por linha sucessória. Alguém como Obama (que, como diz Carlos Gaspar, não é branco e também não é negro), não teria podido aspirar ao que obteve, se os Estados Unidos fossem uma monarquia.
Mas, além disso, toda a cerimónia foi percorrida por um fio emotivo, uma vibração patriótica (chamemos-lhe assim), uma adesão genuina à unidade republicana (unidade na diversidade e na pluralidade) que pôs em evidência a força mobilizadora e integradora da República, particularmente relevante em tempos de crise.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Ontem, na Nazaré




Fotografou Margarida Araújo.

Disse o Presidente Barack H. Obama. Comentou Jorge Sampaio


[...] Para onde quer que olhemos, há trabalho a fazer. O estado da economia pede acção corajosa e rápida, e nós vamos agir – não só para criar novos empregos, mas para lançar novas bases de crescimento. Vamos construir estradas e pontes, redes eléctricas e linhas digitais que alimentem o nosso comércio e nos liguem uns aos outros. 
Vamos recolocar a ciência no seu devido lugar e dominar as maravilhas da tecnologia para elevar a qualidade do serviço de saúde e diminuir o seu custo. Vamos domar o sol e os ventos e a terra para abastecer os nossos carros e pôr a funcionar as nossas fábricas. E vamos transformar as nossas escolas e universidades, para satisfazer as exigências de uma nova era. 
Podemos fazer tudo isto. E tudo isto iremos fazer. Há alguns que, agora, questionam a escala das nossas ambições, sugerem que o nosso sistema não pode tolerar muitos planos grandiosos. A memória deles é curta. Esqueceram-se do que este país já fez; e do que homens e mulheres livres podem fazer quando à imaginação se soma um objectivo comum, e à necessidade se alia a coragem.
O que os cínicos não compreendem é que o chão se mexeu debaixo dos seus pés, que os imutáveis argumentos políticos que há tanto tempo nos consomem já não se aplicam. A pergunta que hoje fazemos não é se o nosso governo é demasiado grande ou demasiado pequeno, mas se funciona, se ajuda famílias a encontrar empregos com salários decentes, cuidados de saúde que possam pagar, pensões de reformas que sejam dignas. Onde a resposta for sim, tencionamos seguir em frente. Onde a resposta for não, os programas chegarão ao fim.
E a todos aqueles que gerem o dinheiro do povo serão pedidas responsabilidades – para que gastem com sensatez, reformem maus hábitos e conduzam os nossos negócios à luz do dia – porque só assim poderemos restaurar a confiança fundamental entre o povo e o seu governo.
Não se coloca sequer para nós a questão de saber se o mercado é uma força positiva ou negativa. O seu poder de gerar riqueza e de aumentar a democracia não tem paralelo, mas esta crise lembrou-nos que, sem um olhar vigilante, o mercado pode ficar fora de controlo, e que uma nação não pode prosperar quando só favorece os que já são prósperos. O sucesso da nossa economia sempre dependeu não só da dimensão do nosso Produto Interno Bruto, mas do alcance da nossa prosperidade; da nossa capacidade em oferecer oportunidades a todos, não por caridade, mas porque é o caminho mais seguro para o nosso bem comum.
[...] Os nossos desafios podem ser novos. Os instrumentos com que os enfrentamos podem ser novos. Mas os valores de que depende o nosso sucesso – trabalho árduo e honestidade, coragem e fair play, tolerância e curiosidade, lealdade e patriotismo – esses são antigas. Estas coisas são verdadeiras. Têm sido a força silenciosa do progresso ao longo da nossa história. O que é pedido, então, é o regresso a essas verdades. 
O que nos é exigido agora é uma nova era de responsabilidade, um reconhecimento, da parte de cada americano, de que temos obrigações para connosco, com a nossa nação, e com o mundo, deveres que aceitamos com satisfação e não com má vontade, firmes no conhecimento de que nada satisfaz mais o espírito, nem define o nosso carácter, do que entregarmo-nos todos a uma tarefa difícil.
Este é o preço e a promessa da cidadania [...]

Pode ser lido na íntegra aqui e here.

Um primeiro comentário: "Um discurso realista"

Um discurso de uma enorme lucidez, sobriedade e firmeza, marcado por uma clara preocupação de inclusividade e exprimindo, digamos, os valores de um "novo humanismo". 
Curiosamente - embora possa ter entendido mal, porque acabei por ouvir parte da intervenção no Times Square -, registei uma frase dita logo no início - "a nossa nação está em guerra" -, que me parece ser um dos fios condutores de todo o discurso. Repare-se, contudo, que a dinâmica resultante desta afirmação já nada tem que ver com lógicas belicistas de má memória, sendo, ao invés, desenvolvido todo um outro tipo de abordagem que desemboca num apelo à união, à tolerância, à cooperação, à solidariedade, condicentes a uma nova era de paz.
Da consciência da gravidade dos desafios - tão sérios que explicam a metáfora do estado de guerra - decorre boa parte dos restantes argumentos, tal como: a revisitação feita da história da América; o apelo à unidade nacional e à necessidade de um sobressalto patriótico; a invocação repetida do sentido de responsabilidade individual e colectiva; enfim, a reiterada afirmação da certeza de que os americanos conseguirão vencer os reptos presentes e "refundar a América", encetando uma nova era de desenvolvimento e solidariedade, fiel aos valores da igualdade, da liberdade e dignidade de todos os homens e povos, fundadores da democracia americana. É um discurso realista, em que se alia ao tom grave o sinal da confiança, em que a nação é chamada a assumir responsabilidades, cerrar fileiras e deitar mãos à obra, na certeza de que assim se conseguirá um futuro melhor para todos. Sob reserva de uma leitura atenta, estas são as minhas primeiras impressões a quente, ou melhor, a frio, porque aqui está um tempo gélido.

Jorge Sampaio (Diário de Notícias, 21 de Janeiro)
Antigo Presidente da República Portuguesa
Alto Representante da ONU para o Diálogo das Civilizações

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Yes, we can

Ion Favreau tem 26 anos e é a partir de hoje o chefe dos speeech writers do Presidente. Já tinha feito, como estagiário, a campanha de Kerry, mas desde 2007 esteve por detrás dos discursos do candidato vitorioso. "Yes we can" tem o seu dedo. E intenção.

Há mais défice?

Preocupações no horizonte com as consequências de uma corrida desenfreada ao defice para acorrer aos impactes da crise. De facto, o apoio dos Governos às economias com base em medidas de política financeira têm limites. Há quem julgue que já se teria ido longe de mais. Apetece perguntar: há mais défice para além da vida?

Bons dias, bons dias! Bonitas!

Continuação da viagem literária pelo mundo vegetal povoado de afectos compreendidos e correspondidos. Depois do texto introdutório, pedido ao agrónomo Joaquim Vieira Natividade, parámos em Ortega y Gasset (reportando-se a Anna de Nouailles) e Eça de Queirós. Prosseguimos agora com Aquilino Ribeiro.

[...] As tílias, que o circundam e recobrem [o Autor refere-se ao pátio da sua casa da Soutosa, Moimenta da Beira] de sombras e perfumes, plantei-as eu, e ano por ano as fui acalentando e tutelando. Por isso, quando arribo de Lisboa, recebem-me luxuriantes, sonoras das abelhas que lhes chupam o pólen, todas elas voltejantes e doiradas como as estrelas que recamam nos painéis os halos das Virgens. Também não dou licença que lhes apanhem a flor, nem para calmante de nervosos, ainda que o mundo se desconjunte com ataques de epilepsia.
As flores converter-se-ão no néctar dos meus cortiços e num sobrecéu de pingentes, pérolas baças, maçanetas de castorina, que dão ideia de que arrearam para uma festa. Chegam a parecer-me mais tafuis que esposas de marajás. Um ano que as deixei esflorar, partiram um ramo nesta, uma frança naquela, fizeram destroços noutras. Imagino a depressão, para não dizer sofrimento, desta árvore que, sendo casquilha, põe todo o desvelo na toilette. Realmente, se há planta que tenha o senso da simetria e das belas ordenanças, numa palavra, ponha a garridice no seu amanho, é esta. Mutiladas, enquanto não escondem o aleijão e não retomam a sua forma, não dormem. São um pouco preciosas, túmidas da frieza de seus climas originários, mas a poder de bem parecidas acabamos por considerá-las quase afáveis. Será pedantaria formular que me conhecem e me aguardam todos os anos, por alturas de fins de Julho? Quando chego, o meu primeiro olhar é para a sua ramagem, o especioso. Um olhar que lhes fala: Bons dias, bons dias! Bonitas! Depois, outro para os fustes: O que vocês cresceram! Daqui a pouco já não as posso abraçar a expandidos braços. Verdade, mais uns anos e bem de junto as não abraçarei. Receberão os abraços dos meus filhos, ao mesmo tempo que passem por cima delas em bólide ignescente os vindouros dos marantéus que tomei sob a guarda.

Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental (História, Paisagem, Folclore). Lisboa, Bertrand, 2008 [1ª ed. 1951]. p. 25-26.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Setora em greve

Eugénia Pinheiro, professora de Português na Escola EB 2-3 Mário de Sá Carneiro, em Camarate, já decidiu - lê-se no Público, edição de hoje - não vai entregar [os objectivos individuais]. "Querem convencer-me de que ando a trabalhar há 36 anos sem objectivos, que durante estes anos nada fiz que tivesse préstimo, que nunca fui avaliada, em suma que nem existi".

Maria Eugénia Prata Pinheiro, que conheço desde os bancos da Faculdade, já o tinha dito no seu blog, "Escola da setora"
Quando a desobediência civil é recurso desta geração de professores, não é possível ignorar que alguma coisa se rompeu, que a crise é profunda.

A caminho de Peniche (Agosto de 1919)

Serra d'el Rei

Alguns minutos e sigo pela estrada triste até à Serra d'el Rei. O chão produz milho amarelo, baixinho, e a areia um vinho branco que tem fama. São três horas de caminho até este sítio onde viveu D. Pedro, o Cruel. Do seu drama restam paredes desmanteladas e uma fonte que continua a correr e a apagar a sede de quem passa. Curvei-me, bebi também, e, transposto o pinheiral, dei com o amplo panorama de terra e mar: a costa, à esquerda o Cabo Carvoeiro, em frente a rocha do Baleal e ao fundo as Berlengas delicadamente pousadas na água.

Raul Brandão, Os Pescadores. Cit. p. 11-112

Mr. Tambourine Man

Canta Melanie Safka. Interpretação recomendada por António Macedo, companheiro de viagem no regresso de Coimbra. Imperdível, de facto.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Um Congresso para?

A ideia parece que é tirar a maioria absoluta ao PS. Para a dar a quem?
O CDS/PP é contra maiorias absolutas de um só partido. Sejam do PS ou do PSD. Consequentemente não advoga a substituição de uma maioria absoluta de um partido pela de outro. O que acha desejável - e para tal veio até às Caldas em Congresso - é que os partidos vitoriosos sejam obrigados a entender-se com outro ou outros para fazer Governo. 
Não pode surpeeender-se que as perguntas dos jonalistas - e provavelmente do eleitorado - decorram deste enunciado. Se e quando não houver maioria absoluta (e portanto a sua tese fizer vencimento), que posição adoptará o CDS? Pretende fazer parte da solução do problema de governabilidade em que se empenhou, ou fica na bancada a ver?

À janela (Matisse)

Henri Matisse, Conversation, 1911.
Museu Ermitage, São Petersburgo.

Pierre Schneider escolheu este quadro para a ilustração da obra monumental em 752 páginas que dedicou a Matisse (Matisse, Paris Flammarion, 1984, nova edição 1992).O quadro representa um par (de facto, o próprio pintor e sua mulher, Amèlie) e mostra a dualidade sobre a qual assenta a relação: linhas direitas e linhas curvas, de pé e sentado, interior e exterior. A janela separa e une. Partindo da dualidade, cria cumplicidade. 

Uma curiosa leitura desta obra é proposta por Schneider, que mostra como Matisse se separou do modelo de representação do casal estabelecido por Van Eyck em Arnolfini Portrait (1434), buscando inspiração no modelo da Annunciation de Fra Angelico (ca. 1450). 

Les Epoux Arnolfini de Van Eyck oferecia o modelo mais conseguido do género. Marido e mulher dão-se a mão. O laço que os une é materializado através de um contacto físico sem insistência: sinal de consentimento e não se sujeição.[…] É o que se teria passado em La Conversation, se a janela - a arte – não tivesse vindo interromper aquela relação. A janela separou os dois esposos, substituindo, como se tivessem acabado de receber uma notícia grave inesperada, a calma familiar por um clima de solenidade hierática. 

E de facto um novo esquema composicional é agora introduzido, a meio caminho, tanto formalmente como pelo seu sentido, entre o quadro do casal e o da trindade teofânica: o da anunciação, onde uma das personagens revela à outra a existência da divindade, a qual no entanto é apenas implícita, formando um triângulo cujo vértice dominante é invisível. Na Conversation, o homem surge separado da mulher, como o anjo da Virgem, em inúmeras Anunciações, pensando nomeadamente na de Fra Angélico nas Cenas da Vida de Jesus Cristo, onde o que os separa é uma janela aberta sobre um jardim […] 

Pierre Schneider, op. cit. p. 22-23

A caminho de Peniche (Agosto de 1919)

Raúl Brandão visitou Peniche e as Berlengas em Agosto de 1919.  A descrição dessa viagem foi publicada em Os Pescadores, obra editada em 1923. Consultei a edição de 1957, da Editorial Estúdios Cor, com prefácio de Manuel Mendes.

Óbidos

Óbidos visto da estrada é o cenário dum presépio, com as muralhas recortadas e moinhos de vento a trabalhar na encosta. Só lhe faltam alguns pastores, com gaitas de foles, descendo o monte... Pequena vila adormecida e quase intacta. Nunca passo por uma destas terrinhas que não me fique pena de lá não morar algum tempo, no silêncio recolhido, deixando a minha vida presa aos vivos e aos mortos. Isto tem um ar tão afastado do mundo! Não se ouve rumor. Um sino tange ao longe... Se há aqui interesses, estão submersos. A vila foi agora mesmo desenterrada com as suas igrejas, e a ruazinha principal onde não mora ninguém - tudo cercado de muralhas de pedra escura, que aproveitaram as ondulações do terreno, até se fecharem lá em baixo na porta principal com azulejos, e que parecem ter crescido tão naturalmente do morro como as árvores...

Raul Brandão, op. cit. p. 121.

sábado, 17 de janeiro de 2009

Médicos, charlatães e melgas nas Caldas (fins do século XVIII)

Narração de William Beckford, de passagem pelas Caldas no seu regresso da viagem a Alcobaça, 11 de Junho de 1794:

Em breve se espalhou pelas Caldas a notícia da chegada de um grande médico alemão, ex-físico da Casa de Sua Ex-majestade Cristianíssima, e ainda não tinham passado cinco ou seis minutos depois de termos posto o pé no lajedo escaldante deste empório da medicina, quando apareceu uma deputação da Faculdade. Estes sábios vieram expressamente para se apresentarem ao dr. Ehrahrt e reclamarem a honra da sua presença numa ronda profissional pelos seus principais pacientes. Foi deveras original a descrição que depois fez, em francês alsaciano, latim puro e português esfarrapado, da aparência e condição lamentável dos desgraçados inválidos metidos em tinas e tanques.
- Encontrei muito deles - disse o indignado médico - com pulsos galopantes, excitados quase até ao frenesi devido à insensata aplicação destas águas potentes; e outros quase sem pulsações. Estes últmos terão em breve repouso absoluto. Tendo em conta os malefícios que aqueles convictos galenistas exercem, com os seus cozimentos e julepos, com as suas pílulas condimentadas e polpa de ossos, e sabe-se lá que mais, acho que em breve irão todos parar à cadeia, e que as almas das vítimas de charlatanices desmascaradas serão rapidamente libertadas dos seus desgraçados corpos, transformadas na pior das prisões por uma corja de reconhecidos vigaristas.
Nunca esquecerei o esgar de indignação e fúria do meu médico contra os que desdenham os remédios e as plantas medicinais. As suas ebulições de ira só amainaram depois de ter emborcado o conteúdo de uma enorme garrafa de vinho, diluído com umas gotinhas de água e acompanhado com um prato com aqueles saborosos bolbos que se usam em Inglaterra para rechear gansos. O objectivo deste petisco, assim o confessou abertamente, era diminuir a flatulência e expelir o príncipe dos gases e todos os seus satélites. Julguei que o prior de São Vicente nunca mais ia parar de rir com esta nova espécie de exorcismo. Em geral, os portugueses são grandes apreciadores de piadas grosseiras, e não me passaria pela cabeça fingir que a do dr. Ehrhart não pertencia a este género. Os donos do comprido casarão onde fomos recebidos acharam por bem acender eles próprios as velas de todos os castiçais e candelabros de vidro da Boémia que enchiam a sala rústica do piso térreo. O intenso clarão, pelo menos igual ao de um ridotto numa pequena cidade italiana, chamava a atenção dos transeuntes, da mesma forma que a luz de uma vela atrai todas as traças e melgas das redondezas. Não tínhamos portanto falta de companhia.
A nossa mesa de chá, que por prudência tinha sido colocada, tanto quanto possível, fora do alacance do festim do dr. Ehrhart, logo se viu rodeada por toda a sociedade caldense que escapava à rigorosa vigilância médica: oficiais velhos e pretensiosos que nada aprenderam sob o comando do conde de Lippe, fidalgos barrigudos que ainda não tinham suado o suficiente para ficar com proporções menos indecorosas, desembargadores e homens de leis, ávidos como tubarões e pesados como cavalos de carga.
Um dos mais ponderosos do grupo, personagem de alguma importância política e distinto doutor da Universidade de Coimbra, começava a ficar um tanto irrequieto porque eu não queria sentar-me a seu lado e explicar-lhe ao pormenor algumas passagens dos Comentários de Blackstone que ele estava ansioso por esclarecer. Enquanto eu afastava a minha cadeira para longe deste teimoso maçador, ele arrastava a sua atrás de mim, com um tal ímpeto que pouco faltou para me abalroar, o que talvez redundasse em grande embaraço meu se entretanto as costas e as pernas da sua cadeira não se tivessem desconjuntado sob o peso. Estatelou-se no chão térreo e toda a gente rebentou a rir, até mesmo os emproados oficiais aposentados do conde de Lippe.

William Beckford, op. cit. p. 94-96

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Poder local

Reunião, em Coimbra, na sede da Associação Nacional dos Municípios Portugueses. Enquanto espero que o Secretário Geral da Associação, Eng.º Artur Trindade, termine outra reunião, tento reconhecer o edifício onde estive há mais de uma década.
Uma placa numa das paredes da recepção recorda-me a circunstância. Em 7 de Abril de 1997. Celebravam-se 20 anos do poder local. Jorge Sampaio assinalou a data estabelecendo por um dia a Presidência da República ali mesmo.
O modelo de descentralização que esta Segunda República adoptou assenta num contrato entre Estado e municípios. Daí o impacte sobre a vida política que a acção municipal tem tido desde há três décadas. Por outro lado, trata de uma instância cuja representatividade se actualiza numa relação de proximidade com os cidadãos. Esse é um capital de governância que importa aprofundar e não desbaratar ou descredibilizar.

À janela (Henri Matisse)

Le violiniste à la fenêtre, 1918
Centre Georges Pompidou

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Vontade e movimento

- Como a inteligência aqui se liberta, hem? E como tudo é animado duma vida forte e profunda!... Dizes tu agora, Zé Fernandes, que não há aqui pensamento...
- Eu?! Eu não digo nada, Jacinto...
- Pois é uma maneira de reflectir muito estreita e muito grosseira...
- Ora essa! Mas eu...
- Não, não percebes. A vida não se limita a pensar, meu caro doutor...
- Que não sou!
- A vida é essencialmente Vontade e Movimento: e naquele pedaço de terra, plantado de milho, vai todo um mundo de impulsos, de forças que se revelam, e que atingem a sua expressão suprema, que é a Forma. Não, essa tua filosofia está ainda extremamente grosseira...
- Irra! mas eu não...
- E depois, menino, que inesgotável, que miraculosa diversidade de formas...E todas belas!
Agarrava o meu pobre braço, exigia que eu reparasse com reverência. Na Natureza nunca eu descobriria um contorno feio ou repetido! Nunca duas folhas de hera, que na verdura ou recorte, se assemelhassem! Na Cidade, pelo contrário, cada casa repete servilmente a outra casa; todas as faces reproduzem a mesma indiferença ou a mesma inquietação; as ideias têm todas o mesmo valor, o mesmo cunho, a mesma forma, como as libras; e até o que há de mais pessoal e íntimo, a Ilusão, é em todos idêntica, e todos a respiram, e todos se perdem nela como no mesmo nevoeiro... A mesmice - eis o horror das Cidades!
- Mas aqui! Olha para aquele castanheiro. Há três semanas que cada manhã o vejo, e sempre me parece outro... A sombra, o sol, o vento, as nuvens, a chuva, incessantemente lhe compõem uma expressão diversa e nova, sempre interessante. Nunca a sua frequentação me poderia fartar...
Eu murmurei:
- É pena que não converse!
O meu Príncipe recuou, com olhares chamejantes, de Apóstolo:
- Como que não converse? Mas é justamente um conversador sublime! Está claro, não tem ditos, nem parola teorias, ore rotundo. Mas nunca eu passo junto dele que não me sugira um pensamento ou não me desvende uma verdade... Ainda hoje quando eu voltava de pescar as trutas... Parei: e logo ele me fez sentir como toda a sua vida de vegetal é isenta de trabalho, da ansiedade, do esforço que a vida humana impõe; não tem de se preocupar com o sustento, nem com o vestido, nem com o abrigo; filho querido de Deus, Deus o nutre, sem que ele se mova ou se inquiete... E é esta segurança que lhe dá tanta graça e tanta majestade. Pois não achas?

Eça de Queirós, A Cidade e as Serras. Porto, Lelo & Irmão Editores, s/d. p. 194-195 (as últimas revistas pelo autor]

15 de Janeiro

Do mesmo modo que implantámos marcas afectivas pelo território, reportamos a nossa identidade a marcos afectivos distribuído pelas séries do tempo. Construímos um geografia sentimental e uma história sentimental. Construímo-nos com ambas.
Se há um espírito do lugar, ele devolve-nos a impressão da nossa passagem. Ali fui feliz, digo, ali soube ser feliz, digo de outro modo, rememorando lugares com os quais faço e refaço um itinerário irrepetível. Se há um espírito do tempo é ele que nos permite reconstituirmo-nos permanentemente como passado. Fazemos da nossa história uma chave para descobrirmos o sentido dos nossos passos.
É por isso que um rasgão nesta arquitectura interior pode ser tão difícil de suturar. Os lugares perdem a luz que os fixavam ao mapa e o fio do tempo perde a continuidade. Há insegurança na leitura do espaço, incerteza na do tempo. A rede tem agora os nós lassos ou desfeitos. O som do eco a que nos habituáramos esvai-se. Uma névoa cinzenta espalha-se lentamente pela paisagem e absorve tudo: os sons e as silhuetas. Nela vagueamos como sonâmbulos.


Munch, Melancholy, 1894-1895.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2009

Reformar a escola pública

Recebi do Professor Paulo Prudêncio, comentador regular deste blog e autor do blog Correntes a seguinte mensagem:

Respeito e compreendo a sua decisão de fechar o debate na entrada anterior sobre a escola pública. Depois de ler esta nova entrada, fui reler os comentários da entrada anterior; estabeleceu-se uma interessante polémica que ajuda o cerne desta discussão: o futuro da escola pública em Portugal. O João imagina como isso é importante para o combate que estamos decididos a travar. Sei que muitos dos intervenientes nestas discussões não gostam que se use o plural: naturalmente que conhecem professores a quem não reconhecem grande profissionalidade. Sei que o que vou escrever a seguir é demasiado, mas que seja: esses não estão na luta; estão, quando muito, nas manifestações onde se podem resguardar no meio de mais de uma centena de milhar de professores.
Há uma questão, no meio de muitas outras claro, que ficou no ar: uma escola só se reforma de fora para dentro. Não concordo, mas não concordo mesmo, com esta asserção: não cabe neste espaço a discussão, mas se alguém estiver interessado no assunto estou completamente disponível para esse importante debate.

Paulo Prudêncio

Confiança na escola pública?

Com a resposta da comentadora que desencadeou a pequena tempestade em torno do, repito, excelente texto da Professora Cristina Nobre (que aconselho a ler na íntegra aqui), achei por bem encerrar os comentários ao post "Confiança na escola pública".
Enquanto decorria a polémica, lembrei-me muitas vezes da frase de Hannah Arendt: "A forma extrema de poder é Todos contra Um. A forma extrema de violência é Um contra Todos". Os mosqueteiros inventados por Alexandre Dumas usavam a fórmula da camaradagem: Todos por Um. Eu participei numa campanha política que tinha por lema: Um por Todos.
A escolha é nossa: de todos e cada um.
Voltarei, assim o espero e desejo, ao tema da escola.

Futebol de salão

Não quero (nem seria certamente oportuno) beliscar o orgulho nacional em alta com a vitória do jogador do Manchester na lista anual dos melhores do mundo. Mas não posso deixar de registar a associação cada vez mais íntima entre este tipo de promoção do futebol, o estrelato dos jogadores, e as revistas "people". Deste ponto de vista - jogadores novos heróis dos media do chamado "social" - Cristiano Ronaldo já destronou Beckham.
Resta saber o que vai suceder a partir daqui ao futebolista propriamente dito. O acidente com o Ferrari devia ser tomado como um aviso sério.
Há quem recomende o imediato regresso do treinador adjunto Queirós ao Manchester, ou melhor, à curadoria do jovem madeirense.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Melancolia (s)

Julio Romero de Torres (1874-1930).
Leitura, 1901-1902. Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia.

Não sei o que mais impressiona neste quadro do jovem pintor de Córdova: se a (irónica?) paleta de cores, se a rigidez da atitude do corpo de formas vincadas, se o olhar que se desprende do livro para nos olhar sem nos ver.

Confronte-se agora a Leitura, com Musa Gitana, obra (1907) que o tornaria para sempre conhecido dentro e fora da sua terra natal. Posição similar da modelo.
Mas ausência dos elementos roupa e livro repercutem-se indelevelmente na paleta de cores da composição e na intensidade do olhar da personagem. 

Vinho do Porto

OS ANIMAIS GIGANTES DE BORDALO LUTAM PELA VIDA

Centenas de moldes centenários das peças de cerâmica de Rafael Bordalo Pinheiro estão guardados numa cave da Fábrica de Faiança das Caldas da Rainha. Com a fábrica em risco de fechar, o que irá acontecer à vespa, às rãs, aos golfinhos mitológicos e a toda a fauna e flora criados por Bordalo? Há quem apele ao Estado para que ajude a manter vivo este património. A artista plástica Joana Vasconcelos, que tem vendido muitas peças feitas a partir de Bordalo, garante que esta produção tem toda a viabilidade económica.
Na sexta-feira, a vespa gigante ainda estava no forno. Só dois dias depois é que se saberia se o animal, criado há mais de um século por Rafael Bordalo Pinheiro e recriado agora a partir do molde original, sairia bem. "É a primeira que se fabrica desde 1900. Isto é histórico", diz a técnica de cerâmica Elsa Rebelo. Só há uma vespa igual a esta, é centenária, e está ali mesmo ao lado, num muro da fábrica de cerâmica das Caldas da Rainha.
Na loja da fábrica já resta muito pouco. As prateleiras foram-se esvaziando ao longo das últimas semanas ao ritmo das notícias sobre a crise económica e os riscos de encerramento das Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro.
Mas quem passar para lá da loja, atravessar o jardim, com o laguinho em redor do qual ainda estão alguns dos animais do tempo de Bordalo Pinheiro, passar pelo lobo, pelo golfinho mitológico, pela abelha gigante, e seguir até às oficinas da fábrica, vai encontrar alguns operários (trabalham aqui cerca de 12 ou 13 pessoas) agarrados às peças que fazem à mão há anos.
Uma delas está a decorar uma concha enorme com limos e musgo, molhando o barro com uma esponja, corrigindo os defeitos com uma faca pequena, e adicionando os detalhes. Na bancada em frente, outro operário faz folhinhas a partir de um molde de gesso. Encostados a uma parede estão duas cabeças de cavalo gigantes, um banco em forma de cogumelo e uma réplica do lobo e a cegonha.
"Esta" - Elsa aponta para a peça dos dois animais - "esteve três ou quatro meses para secar, está à espera de ser pintada a pincel com vidrados cerâmicos, e depois ainda terá nova cozedura." Quem encomendar uma peça desta dimensão terá, por isso, que se preparar para esperar alguns meses, sobretudo se o tempo estiver húmido, o que atrasa o processo de secagem.
São, todas elas, peças que só voltaram à vida há poucos anos, depois do lento e complexo processo de recuperação dos moldes centenários de Bordalo. "O cavalo foi feito há menos de um ano. O caracol é muito recente, ainda só fizemos dois ou três." Desmembrada ainda está uma enorme lagosta, porque os animais gigantes são feitos em vários bocados e depois de saírem do forno têm ainda de ser montados.
A montagem tem a dificuldade acrescida de os animais serem curvos, sem uma base estável, porque foram, em muitos casos, concebidos para decorar beirais de telhados. "Bordalo tinha uma equipa de técnicos que, como nós hoje, estudavam em conjunto a melhor maneira de fazer as coisas", diz Elsa, que é, ela própria, filha de ceramistas. "Por vezes chegamos a estar três, quatro ou cinco pessoas à volta de uma peça a pensar 'como é que vamos fazer isto?'"

Um chalé de cortiça
Muitos destes animais gigantes terão sido criados para decorar o pavilhão de Portugal na Exposição Universal de Paris de 1889. Nessa altura já a fábrica estava em crise (a actual não é a primeira). Elsa Rebelo tira de uma gaveta velhas fotografias já meio sumidas que mostram o que era este espaço no tempo de Rafael. "A fábrica não era aqui onde é agora. Ficava num terreno contíguo a este e era muito diferente." Mostra uma imagem em que se vê o chalé de cortiça, no meio das árvores, onde vivia Bordalo. "O edifício da fábrica era lindíssimo, com uma arquitectura algo oriental, uma mistura muito grande de influências. Tinha um frontão de cobras enroladas, um jardim com fontes, lagos, grandes cerâmicas."
Desde há oito ou nove anos que os operários especializados começaram a recuperar os moldes originais do criador da figura do Zé Povinho, guardados numa cave, e a tentar refazer as peças - primeiro as mais pequenas e depois, à medida que iam ganhando confiança, as maiores, até chegarem aos animais gigantes. Depois, um dia, há poucos anos, a artista plástica Joana Vasconcelos visitou a fábrica, apaixonou-se pelos animais e começou a fazer encomendas. A vespa que sexta-feira estava no forno é para ela.
Mas este é um mundo em risco. As Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro estão à beira da falência, os 172 operários já não recebem há dois meses, e Jorge Serrano, o principal dos treze sócios da empresa, não vê possibilidades de a empresa continuar a funcionar depois da quebra brutal das encomendas, feitas sobretudo pelos Estados Unidos, da louça de fabrico industrial que nos últimos tempos garantiu a sobrevivência do negócio.
Catarina Portas, que vende peças de Bordalo - incluindo as célebres andorinhas - na sua loja A Vida Portuguesa, em Lisboa, lançou o alerta numa crónica recente no P2: "Na minha loja, vendo Bordalo Pinheiro. E porque vejo o brilho nos olhos dos designers ou jornalistas estrangeiros quando miram e compram uma peça Bordalo, asseguro-vos que este é um património que pode e deve ser explorado comercialmente. E terá sucesso. Assim exista compreensão para mudar uma estratégia seguida nos últimos anos que fez a Bordalo crescer, preferindo a grande produção para exportação de loiça quase corriqueira e facilmente copiável, em vez de apostar seriamente naquilo que mais ninguém tem nem sabe fazer, a delicada e laboriosa reprodução do seu acervo."
Um apelo que é repetido por Joana Vasconcelos. "Há um património do Rafael mal estimado, que devia ser uma coisa do país e não propriedade de uma fábrica", diz, indignada. Descobriu-o quando estava a preparar uma exposição no Museu Bordalo Pinheiro. "Estava a trabalhar com o sapo, e dou de caras com aquele caranguejo gigante. 'Há mais disto?', perguntei." Depois não parou. "Andamos há quatro anos a tentar recuperar a vespa, é um trabalho de enorme complexidade técnica."
Às vozes que pedem um apoio para salvar a herança de Bordalo junta-se a de Raquel Henriques da Silva, investigadora e professora de História de Arte. "A crise está ligada à fábrica de produção corrente, em massa, essa é a área que entrou em ruptura. Por seu lado, o núcleo histórico tem vindo a ser reactivado, e agora corre o risco de ser engolido nesta crise."

Uma jarra com 2,5 metros
A fábrica começou a funcionar em 1884, mas uma década depois a situação era já bastante difícil. Em 1895, Bordalo recebeu do político José Relvas uma encomenda para fazer uma jarra. Decidiu dedicá-la a Beethoven e fazê-la enorme. "Tinha 2,60 metros", conta Elsa. João B. Serra, professor na Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, explica, num texto publicado na Gazeta das Caldas, a importância que a jarra teve na altura: "Encarada como uma extravagância bordaliana, uma provocação de génio aos condicionamentos do processo cerâmico, a Jarra Beethoven pode talvez ser tomada como uma tentativa de esconjurar a maldição de uma empresa que falhara sucessivamente os projectos industriais que presidiram à sua criação. Certo é que a maldição se abateu cedo sobre a própria jarra."
José Relvas achou-a demasiado grande e, depois disso, "a jarra deambulou ao longo dos anos 1898 e 1899 entre Caldas e Lisboa [...] e entre Lisboa e Rio de Janeiro, sempre em busca de um comprador que lhe fizesse jus". Para tentar salvar a fábrica, Bordalo viajou com a jarra até ao Brasil na esperança de a vender. Foi leiloada, mas ficou numa rifa que não fora comprada por ninguém. Sem mais alternativas, Bordalo acabou por a oferecer às autoridades brasileiras. Hoje, conclui João Serra, "permanece prisioneira da sua maldição, num discreto recanto do Museu das Belas-Artes do Rio de Janeiro".
Rafael Bordalo Pinheiro morreu em 1905, a fábrica foi vendida em hasta pública, mas o filho, Manuel Gustavo, conseguiu recuperar na justiça os moldes centenários que lhe pertenciam por herança. "Os operários não quiseram um novo patrão, por isso juntaram-se a Manuel Gustavo e, mesmo em ateliers emprestados, nunca pararam de trabalhar", conta Elsa. Três anos depois da morte do pai, Manuel Gustavo fundou, no terreno ao lado do original, a Fábrica San Rafael. Com a sua morte, em 1920, um grupo de caldenses tomou conta da fábrica. "Houve vários ciclos e tornou sempre a renascer. Espero que desta vez aconteça o mesmo."
Mas se a Jarra Beethoven é peça única, outras que Bordalo fez não precisam de o ser (embora no museu da fábrica das Caldas existam algumas que também estão condenadas a isso, por não terem já molde, como o São Jorge e o Dragão que está à entrada do museu). Existe uma cave cheia até ao tecto de moldes de gesso, cuidadosamente arrumados e identificados. A lápis está escrito o que o formato redondo do exterior do molde não deixa perceber: "vespa", "a cegonha e o lobo". Mais à frente, numa prateleira, estão os bustos, de Camilo Castelo Branco, Ramalho Ortigão, Eça de Queirós e do próprio Rafael Bordalo Pinheiro, no meio de um medalhão de frutos.
"Começou-se a arrumar os moldes nesta cave e, paralelamente, a recuperar peças, mas de pequeno porte, como o Arola, a figura do imigrante português que volta do Brasil, e que há tempo que não se produzia", continua Elsa. "Há cinco ou seis anos decidimos aventurar-nos nas peças gigantes. E isso é outro mundo. Um molde recente da vespa ou da lagosta pesa, no seu conjunto, uns 500 ou 600 quilos. São precisos seis homens para o virar ao contrário. O custo de recuperação destas peças é avultadíssimo." Os moldes antigos são cheios uma última vez, o bloco de barro que sai desse molde é depois trabalhado, para acentuar os relevos, e daí é tirado um novo molde.
Quando estas figuras, há muito desaparecidas, recomeçaram a aparecer nas lojas da fábrica, "as pessoas ficaram muito admiradas, mesmo os caldenses, que não conheciam muitas delas". Alguns tinham fotografias antigas onde se podia ver um ou outro daqueles bichos, "outros, mais idosos, lembravam-se de algumas destas peças, como os caracóis, a decorar o parque D. Carlos I nas Caldas".
Apesar da situação da fábrica, Elsa Rebelo parece ter uma energia renovada enquanto anda de um lado para o outro, recebendo jornalistas e visitantes. "Temos trabalhado aqui, a fazer arqueologia industrial, sem um cêntimo de apoio de lado nenhum, e, no fundo, a salvaguardar um património que pertence a um país." Se não surgir uma solução para a fábrica, corre-se o risco de perder este património - que é também humano, já que estes são operários especializados em cerâmica bordaliana e não existe hoje (ao contrário do que acontecia no tempo de Bordalo) uma escola que ensine estas técnicas específicas às gerações mais novas.

Reinventar Bordalo
"Se se perder esta dinâmica é muito difícil voltar a encontrá-la", avisa Raquel Henriques da Silva, defendendo "um apoio especial do Governo para garantir que este núcleo histórico possa continuar". É preciso, diz, "reactivar a produção destas peças gigantescas, que são um deslumbre, são de uma beleza perturbante".
A intervenção de Joana Vasconcelos e as encomendas de Catarina Portas são prova do potencial comercial deste núcleo, acredita Raquel Henriques da Silva. "O que estimulou o Bordalo está a voltar a acontecer. Ele era um artista interessado em dar uma feição moderna [à cerâmica das Caldas]. Agora está a acontecer com a Joana Vasconcelos." É importante, frisa, que estes moldes não vão parar a um museu, mas que se mantenha a produção viva. "Gostava que um economista me provasse que isto não tem viabilidade económica."
Joana Vasconcelos confirma. "Estamos a falar de um grande artista português. Aquilo devia ser património do Estado, e estimado como tal. Além disso, tem valor comercial. Podia ser vendido como objecto de luxo, topo de gama, da nossa cultura. Eu própria vendo estas peças e apercebi-me do poder comercial que elas têm." Uma das suas sugestões é a de que se convidem designers para fazer novas obras a partir daqueles moldes, reinventando o trabalho de Bordalo com uma visão contemporânea. "Cada vez que lá vou arrepio-me a pensar nas peças fantásticas que estão naqueles moldes."
Para explicar o que está em causa, Raquel Henriques da Silva usa uma comparação: "É como se o vinho do Porto estivesse em risco de acabar submerso em vinho a martelo."
Interrogado sobre o assunto, na sexta-feira, o ministro da Cultura, José António Pinto Ribeiro, disse à Rádio Renascença que considera muito importante conservar os moldes, mas que o mais importante é "manter aquela fábrica viva" e que isso não passa pelo seu ministério. "Ultrapassa-me completamente enquanto ministro da Cultura." O P2 contactou o Ministério da Economia, mas não foi possível obter uma resposta em tempo útil.
Elsa Rebelo não desanima e continua a fazer planos. Olha para um par de rãs debaixo de uma bananeira, uma delas com um pequeno leque na mão, numa peça já danificada. "O molde das rãs está a desfazer-se completamente. Se não for impossível, será pelo menos muito difícil recuperar este par de rãs. Mas eu ainda não desisti de o pôr em pé."

Texto: Alexandra Prado Coelho
Foto: Pedro Cunha
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Jornal Público | 13 de Janeiro de 2009