[...] As tílias, que o circundam e recobrem [o Autor refere-se ao pátio da sua casa da Soutosa, Moimenta da Beira] de sombras e perfumes, plantei-as eu, e ano por ano as fui acalentando e tutelando. Por isso, quando arribo de Lisboa, recebem-me luxuriantes, sonoras das abelhas que lhes chupam o pólen, todas elas voltejantes e doiradas como as estrelas que recamam nos painéis os halos das Virgens. Também não dou licença que lhes apanhem a flor, nem para calmante de nervosos, ainda que o mundo se desconjunte com ataques de epilepsia.
As flores converter-se-ão no néctar dos meus cortiços e num sobrecéu de pingentes, pérolas baças, maçanetas de castorina, que dão ideia de que arrearam para uma festa. Chegam a parecer-me mais tafuis que esposas de marajás. Um ano que as deixei esflorar, partiram um ramo nesta, uma frança naquela, fizeram destroços noutras. Imagino a depressão, para não dizer sofrimento, desta árvore que, sendo casquilha, põe todo o desvelo na toilette. Realmente, se há planta que tenha o senso da simetria e das belas ordenanças, numa palavra, ponha a garridice no seu amanho, é esta. Mutiladas, enquanto não escondem o aleijão e não retomam a sua forma, não dormem. São um pouco preciosas, túmidas da frieza de seus climas originários, mas a poder de bem parecidas acabamos por considerá-las quase afáveis. Será pedantaria formular que me conhecem e me aguardam todos os anos, por alturas de fins de Julho? Quando chego, o meu primeiro olhar é para a sua ramagem, o especioso. Um olhar que lhes fala: Bons dias, bons dias! Bonitas! Depois, outro para os fustes: O que vocês cresceram! Daqui a pouco já não as posso abraçar a expandidos braços. Verdade, mais uns anos e bem de junto as não abraçarei. Receberão os abraços dos meus filhos, ao mesmo tempo que passem por cima delas em bólide ignescente os vindouros dos marantéus que tomei sob a guarda.
Aquilino Ribeiro, Geografia Sentimental (História, Paisagem, Folclore). Lisboa, Bertrand, 2008 [1ª ed. 1951]. p. 25-26.
1 comentário:
A natureza envolve o escritor, chama-o e diz-lhe: Olha-me, eu também faço parte da tua realidade.
João Ramos Franco
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