Em breve se espalhou pelas Caldas a notícia da chegada de um grande médico alemão, ex-físico da Casa de Sua Ex-majestade Cristianíssima, e ainda não tinham passado cinco ou seis minutos depois de termos posto o pé no lajedo escaldante deste empório da medicina, quando apareceu uma deputação da Faculdade. Estes sábios vieram expressamente para se apresentarem ao dr. Ehrahrt e reclamarem a honra da sua presença numa ronda profissional pelos seus principais pacientes. Foi deveras original a descrição que depois fez, em francês alsaciano, latim puro e português esfarrapado, da aparência e condição lamentável dos desgraçados inválidos metidos em tinas e tanques.
- Encontrei muito deles - disse o indignado médico - com pulsos galopantes, excitados quase até ao frenesi devido à insensata aplicação destas águas potentes; e outros quase sem pulsações. Estes últmos terão em breve repouso absoluto. Tendo em conta os malefícios que aqueles convictos galenistas exercem, com os seus cozimentos e julepos, com as suas pílulas condimentadas e polpa de ossos, e sabe-se lá que mais, acho que em breve irão todos parar à cadeia, e que as almas das vítimas de charlatanices desmascaradas serão rapidamente libertadas dos seus desgraçados corpos, transformadas na pior das prisões por uma corja de reconhecidos vigaristas.
Nunca esquecerei o esgar de indignação e fúria do meu médico contra os que desdenham os remédios e as plantas medicinais. As suas ebulições de ira só amainaram depois de ter emborcado o conteúdo de uma enorme garrafa de vinho, diluído com umas gotinhas de água e acompanhado com um prato com aqueles saborosos bolbos que se usam em Inglaterra para rechear gansos. O objectivo deste petisco, assim o confessou abertamente, era diminuir a flatulência e expelir o príncipe dos gases e todos os seus satélites. Julguei que o prior de São Vicente nunca mais ia parar de rir com esta nova espécie de exorcismo. Em geral, os portugueses são grandes apreciadores de piadas grosseiras, e não me passaria pela cabeça fingir que a do dr. Ehrhart não pertencia a este género. Os donos do comprido casarão onde fomos recebidos acharam por bem acender eles próprios as velas de todos os castiçais e candelabros de vidro da Boémia que enchiam a sala rústica do piso térreo. O intenso clarão, pelo menos igual ao de um ridotto numa pequena cidade italiana, chamava a atenção dos transeuntes, da mesma forma que a luz de uma vela atrai todas as traças e melgas das redondezas. Não tínhamos portanto falta de companhia.
A nossa mesa de chá, que por prudência tinha sido colocada, tanto quanto possível, fora do alacance do festim do dr. Ehrhart, logo se viu rodeada por toda a sociedade caldense que escapava à rigorosa vigilância médica: oficiais velhos e pretensiosos que nada aprenderam sob o comando do conde de Lippe, fidalgos barrigudos que ainda não tinham suado o suficiente para ficar com proporções menos indecorosas, desembargadores e homens de leis, ávidos como tubarões e pesados como cavalos de carga.
Um dos mais ponderosos do grupo, personagem de alguma importância política e distinto doutor da Universidade de Coimbra, começava a ficar um tanto irrequieto porque eu não queria sentar-me a seu lado e explicar-lhe ao pormenor algumas passagens dos Comentários de Blackstone que ele estava ansioso por esclarecer. Enquanto eu afastava a minha cadeira para longe deste teimoso maçador, ele arrastava a sua atrás de mim, com um tal ímpeto que pouco faltou para me abalroar, o que talvez redundasse em grande embaraço meu se entretanto as costas e as pernas da sua cadeira não se tivessem desconjuntado sob o peso. Estatelou-se no chão térreo e toda a gente rebentou a rir, até mesmo os emproados oficiais aposentados do conde de Lippe.
William Beckford, op. cit. p. 94-96
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