O seu nome era-me familiar, porém, desde os anos 60, quando alguns livros seus, à revelia dos meus professores de então, se tornaram leitura obrigatória de um pequeno grupo de alunos de História da mesma Faculdade, no qual eu me incluía. Refiro-me a Revolução de 1383: tentativa de caracterização (Portugália, 1965), Raízes da Expansão Portuguesa (Prelo, 1964) , Alexandre Herculano (Presença, 1965) e à edição da Crónica de D. Pedro, por Fernão Lopes, que prefaciou e organizou para a Portugália em 1967.
Sujeitaram-nos a trabalhos forçados sem outro sentido senão o da humilhação e o da destruição física. Inventaram a “Frigideira”, uma caixa de cimento de nove metros quadrados onde o ar e a luz entravam por buracos abertos na porta. Por vezes a sede era tanta que passavam a língua pelas paredes para absorver as gotas da respiração. Gabriel Pedro viveu naquele inferno cento e cinquenta e três dias. Cedo chegaram as doenças e a morte. A febre devorava os corpos. Houve momentos em que na barraca da enfermaria mortos e vivos se confundiam. Deram-lhes choques eléctricos nos pés. O marinheiro João Faria Borda reagiu e sobreviveu depois de dezasseis anos de presídio. O Campo da Morte não existia só para dobrar e liquidar os presos mas para ameaçar toda e qualquer resistência no país. “Sabem o que vos espera.”
Pelo Campo passaram até 1954 trezentos e quarenta presos políticos, trinta e dois dos quais estão aqui sepultados. Morreram na força da vida: dois contavam vinte e quatro anos, os mais entre vinte e quatro e quarenta anos. Em 1978 uma multidão, calculada em 200 000 pessoas, acompanhou os seus restos mortais até este mausoléu e memorial. Certamente, aos presos não faltaram horas e horas de angústia e desespero. Não estavam no palco. Ninguém via como sofriam e aguentavam. Os olhos que os cercavam ressumavam ódio e procuravam todos os pretextos para a humilhação, os espancamentos e as torturas. Mas muitos podiam subscrever, dia a dia, as palavras de Spartaco Fontano, fuzilado pelos nazis: “Querida Mãe”, “não culpe mais ninguém pela minha morte, eu mesmo escolhi o meu destino”. Vivia-se então o tempo de Guernica, do odor a sangue e fezes que soprava das terras de Espanha –“Não passarão!”. Era o tempo das hordas nazis, da Gestapo, da PVDE e de outras polícias de repressão, tortura e morte.
À Guerra Civil e transnacional de Espanha, onde participaram voluntários de cinquenta países, sucedia a Segunda Guerra Mundial com o seu cortejo de horrores: 50 milhões de mortos, milhões de mutilados, campos de extermínio, fábricas, cidades e campos destruídos. Mas, por toda a parte, dos escombros brotava impetuosa a esperança de que no final viria um mundo melhor.
E quando chegou a Vitória, multidões em delírio inundaram no mundo as ruas e praças das cidades vencedoras; as ruas de Lisboa, do Porto, de Coimbra e das principais cidades de Portugal.
A liberdade estava já ali. Demorou vinte e nove anos, afinal.
Não podemos perder a liberdade. Olhai, como levou tempo a recuperá-la.
Depois destes trabalhos, o António Borges Coelho dedicou-se sobretudo à filosofia (Leibniz, Espinosa) e eu devo ter prestado mais atenção à obra do poeta, que entretanto também foi saindo. Mas em 1972, o historiador voltou com um importante trabalho que muito contribuiu para mudar o nosso entendimento das origens civilizacionais de Portugal e que enterrou um conjunto de ideias feitas sobre os modelos de relacionamento entre cristãos e árabes (Portugal na Espanha Árabe, 4 volumes. Seara Nova, 1972-1975).
Da década de 80 para cá, foram várias as ocasiões em que me cruzei com António Borges Coelho, testemunhei e beneficiei da sua palavra esclarecida, da sua camaradagem intelectual e imensa simpatia.
Momento especial que recordo foi o das suas provas de doutoramento, em 1986, para as quais fui mobilizado por um telefonema do Professor José Mattoso. Um grupo numeroso de admiradores de António Borges Coelho fez questão de o acompanhar naquele momento tão singular da sua vida de historiador feita à margem da academia perante um juri de académicos, onde pontuavam figuras que ele combatera politicamente. Deve dizer-se que o "candidato" se vira forçado a substituir o seu patrono inicial, o Professor Joaquim Barradas de Carvalho, entretanto falecido. Da notável dissertação que defendeu brilhantemente, sobre A Inquisição de Évora: 1533-1668, guardo uma 2ª edição na qual o autor quis apor uma bela dedicatória (Março de 2002).
Jubilou-se em 1998. No ano anterior, tive o privilégio de o acompanhar, e ao Cláudio Torres, numa visita oficial a Marrocos. O que então aprendi com esta extraordinária dupla de conhecedores do Mediterrâneo e da sua história não tem paralelo.
Depois disso, houve outras ocasiões de encontro fraterno e de homenagem (como aquela em que o Presidente da República lhe impôs uma das mais altas distinções nacionais). Entre estas últimas, gostaria de destacar as que tiveram origem em evocações da liberdade realizadas em Peniche, nomeadamente a que teve lugar nas vésperas do 25 de Abril de 2004, nas comemorações nacionais do 30º aniversário da revolução democrática.
De facto, António Borges Coelho foi um dos detidos no Forte de Peniche. Aderiu ao Partido Comunista e foi seu funcionário político. Foi preso na década de 50, passou pela cadeia do Aljube e mais tarde pela de Peniche, onde aliás se casou. Ele foi um dos que ficou quando Álvaro Cunhal e outros membros do mesmo Partido realizaram com êxito a fuga de 3 de Janeiro de 1960. Foi portanto dos que sofreram as represálias adicionais, após este afrontamento à eficiência dos métodos repressivos do Autoritarismo.
O Núcleo Museológico das antigas celas da prisão política de Peniche guarda diversos registos - cartas, poemas manuscritos - da passagem deste humanista por aquele espaço que hoje é de memória da Resistência e de celebração da Liberdade. A liberdade que António Borges Coelho definiu nestes termos em Janeiro de 1957:
Liberdade
... amo-te de menino
Encontrei-te
num mundo de operários
na prisão.
É tempo! É tempo!
O nosso Povo sofre
Sai para a rua
Com uma flor na mão!
O Professor José Mattoso disse recentemente (associando-se a uma homenagem que o Campo Arqueológico de Mértola prestou ao Professor António Borges Coelho no ano em que perfez 80 anos):
No princípio da sua vida adulta arriscou a vida e a liberdade lutando contra a ditadura salazarista. Não virou a cara às agressões da tortura, da humilhação, da violência física e da prisão. Por isso pôde falar, ainda há poucos meses, em nome das vítimas do tribunal da Boa Hora da época salazarista, «gravemente ofendidas na sua dignidade e no seu próprio corpo», e dizer que é preciso avivar a memória e lembrar as «mulheres e homens que nada tinham senão o corpo e a mente, e indicavam, com o seu sacrifício, que há momentos em que é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa». Desprezou o cerco das ameaças, da marginalização e da vigilância da PIDE, viveu do seu trabalho como jornalista, e, sem bolsas, sem ajuda de ninguém, fez o seu curso de Histórico-Filosóficas.
Pedimos-lhe, enfim, Professor Borges Coelho, que aceite esta homenagem por ter alcançado o mais alto lugar na hierarquia universitária, e por ter, como mestre, orientado, ajudado e encorajado muitos alunos e discípulos a desenvolver as suas capacidades. E ainda que a aceite por não ter esquecido os seus compromissos e o seu respeito pela cultura popular, por ter demonstrado sempre, na vida pública, uma atitude de clara e inteira responsabilidade cívica.
A 29 de Outubro de 2006, António Borges Coelho proferiu, no cemitério do Alto de S. João, uma alocução de homenagem a todos aqueles que foram encarcerados no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde. Publico um extracto [o texto completo pode ser lido aqui] que bem ilustra a figura deste historiador e escritor e a sua grande alma.
Canto aqueles que caíram
Os que deitados à terra
Já estão nascendo no trigo
[Rafael Alberti]
Viemos homenagear homens simples que veneramos. Muitos dos seus nomes entraram no imaginário colectivo: Bento Gonçalves, Mário Castelhano e tantos outros.
Direi retomando o poeta Rafael Alberti na evocação dos mártires da Espanha republicana:
A quem nomearei primeiro?
Ninguém aqui é segundo
quando o aço é de aço.
Todos os que resistiram à brutalidade e à infâmia merecem o primeiro lugar. Viemos homenagear homens comuns, operários, marinheiros, intelectuais. Viemos prestar homenagem aos marinheiros do “Afonso de Albuquerque”, do “Dão", do “Bartolomeu Dias” que ousaram levantar-se contra a ditadura; aos operários da Marinha Grande que tomaram a vila em protesto contra a ilegalização dos sindicatos livres; e a todos aqueles que vieram da luta legal e clandestina contra o fascismo e pela liberdade.
Eram comunistas, anarquistas, democratas, homens que se orgulhavam dos seus ideais e por eles arriscavam a vida. Acreditavam na justeza da sua causa e que a história a tinha designado como vencedora.
Me feriram
golpearam
Até a morte me deram
3 comentários:
Com o teu relato e conhecimento sobre António Borges Coelho, o Texto de José Mattoso sobre ele em 04.Jul.2008 e a alocução de homenagem que António Borges Coelho proferiu, no cemitério do Alto de S. João, toda a minha vivência dos factos aos 17 anos de idade, (fuga de Peniche em 1960), em Caldas da Rainha, como a que escrevi no Blog do ERO, e conto sobre o “Dr. Raimundo Neto “meu explicador (para o 7º ano), que quando da fuga de Álvaro Cunhal e companheiros da Fortaleza de Peniche (1960), é preso e quando regressa ás Caldas, talvez seis meses depois, que alegria de o ver era ofuscada pelo estado físico em que se encontrava”, isto é uma parte do que sei e transmito devido ao contexto em escrevi, mas muitos mais se passou, no entanto sendo realidades de história vivida sinto que perante as palavras que leio não é agora a oportunidade de as contar…
Centro-me agora no que li, e que apenas porque essas palavras me tocam emocionalmente vou sublinhar:
A 29 de Outubro de 2006, António Borges Coelho proferiu, no cemitério do Alto de S. João, uma alocução de homenagem a todos aqueles que foram encarcerados no Campo de Concentração do Tarrafal, em Cabo Verde
É tempo de preservar a memória. Não permitamos que apaguem e destruam as marcas no Tarrafal, no Aljube, na sede da Pide, no Tribunal Plenário, em Caxias, na Pide do Porto, na Fortaleza de Angra, na Fortaleza de Peniche. Constituem um património indispensável para a pedagogia da liberdade e da democracia.
Texto de José Mattoso, 04.Jul.2008
Por isso pôde falar, ainda há poucos meses, em nome das vítimas do tribunal da Boa Hora da época salazarista, «gravemente ofendidas na sua dignidade e no seu próprio corpo», e dizer que é preciso avivar a memória e lembrar as «mulheres e homens que nada tinham senão o corpo e a mente, e indicavam, com o seu sacrifício, que há momentos em que é preciso dizer não para que a água da vida corra limpa»
Bela lembrança de um homem de excepcional qualidade que continua a trabalhar e a encantar. Estive no jantar que a Caminho lhe organizou no dia do 80º aniversário e testemunhei isso mesmo.
Porque é que a Câmara de Peniche o não convidou para falar na sessão do dia 3? Historiador, estava lá quando os camaradas saltaram o fosso...
O Presidente da Câmara de Peniche tem alguma ideia sobre este assunto? Sempre que o oiço, fico com a sensação de que é simpático, com certeza, bem intencionado, sem dúvida, mas... Tem ideias? Sabe o que quer para a Fortaleza? Pelo que li neste blogue, esta iniciativa não foi brilhante. Como gostaria de estar enganada!
MT
Bonito, muito bonito.
Abraço.
Paulo Prudêncio.
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