sábado, 13 de outubro de 2012

A cidade, Guimarães, Europa, 2012

Apesar dos vestígios, dos sinais do tempo, a experiência de todos os dias parece contrariar tudo o que o conhecimento indica. A cidade surge-nos como se sempre tivesse sido assim, quando a sua dimensão, como o de todas as criações humanas, é a da história. É como se, quais operadores de “Photoshop”, sempre começássemos por ordenar “flatten image” (espalmar, aglomerar a imagem), ocultando os “layers” (planos, estratos) de que ela se compõe.
“Guimarães 2012” parte desta contradição, que enfrenta declinando os distintos modos e formas em que ela se desenrola. Se o papel da criação artística é, sumariamente, o de acrescentar novos elementos ao plano (“layer”) da contemporaneidade, ela também intervém na desocultação que possamos hoje fazer dos planos que o tempo comprimiu.
Os atenienses forjaram uma cidade de deuses para melhor pensar a cidade dos homens. De facto a sua cidade de deuses era uma cidade de filósofos, onde se discutia a dimensão, o governo e o destino da cidade. Mas os templos magníficos da Acrópole dispersaram referencias líticas pela cidade dos homens, como se, de cada ponto de observação da cidade alcandorada, os pensadores tivessem de dispor, em todos os quadrantes. de réplicas, ainda que incompletas ou menores, dos templos onde buscavam e exerciam a inspiração.
Ser capital europeia da cultural é para Guimarães uma oportunidade para actualizar o discurso “multi-layer” sobre a cidade, proporcionando um conjunto de conectores que permitem a todos, habitantes e visitantes, produtores e consumidores, descobrir ou redescobrir as temporalidades e as espacialidades, as construções e as descontruções de que se faz uma cidade.
Péricles, no famoso discurso de elogio fúnebre reelaborado por Tucídides, passa em revista todos os “layers” que faziam a singularidade de Atenas, metáfora da cidade ideal.
“Começo pelos nossos antepassados” – disse o orador. “É justo e adequado que, numa ocasião como esta, lhes seja dedicada a primeira menção. Foram eles que viveram neste país, sem interrupção, de geração em geração, e, graças ao seu valor, legaram-no livre aos que aqui vivem presentemente”.
Mas não esquece a geração precedente. “E se os nossos mais remotos antepassados são dignos de louvor, muito mais são os nossos pais, que acrescentaram à herança recebida o império que agora possuímos, não poupando sacrifícios para serem capazes de deixar as suas conquistas aos que, como nós, constituímos a presente geração”. E enumera em seguida as componentes essenciais da República de que justamente se orgulha a sua geração e pelos quais merece panegírico: a decisão pelo método democrático, a justiça igualitária, o livre acesso aos cargos públicos, a não profissionalização da actividade politica, a inviolabilidade da vida privada, a tolerância para com a diferença, o império da lei e a protecção dos oprimidos, o direito à educação, ao lazer e à cultura, o gosto pelo requinte sem extravagâncias, a abertura ao comércio externo e a aceitação do estrangeiro na respectiva diversidade cultural, o respeito pelos vencidos,
Péricles sabe que desta visão, desta grandeza, há testemunhos. A memória ficou corporizada na literatura e nas artes. “A admiração dos tempos presente e futuro ser-nos-á devida, uma vez que não deixámos o nosso poder sem testemunhos, antes os recordamos em grandiosos monumentos”. A eles acrescem todavia “uma memória não escrita que (...) permanece nos corações das suas gentes”.
Como não ver aqui, neste patriotismo da cidade, os traços da modernidade politica anunciada da Europa? Este é o desafio das gerações actuais. Honrar o passado, os passados, avaliar o futuro. É alias nessa capacidade de avaliação colectiva que reside para Péricles o segredo do modelo de governo ateniense.
“Nós atenienses, somos capazes de ajuizar todos os acontecimentos públicos e, em vez de considerarmos a discussão dos mesmos como um obstáculo para a acção, pensamos que ela constitui um passo preliminar indispensável a qualquer acção prudente”.

2 comentários:

Isabel Soares disse...

Belíssimo texto. Extraordinária análise, que vive muito mais de si (que é como quem diz: da sua opinião) do que das citações por que habitualmente prima, nas publicações que aqui nos deixa.

Gosto de o ver à “boca de cena” na força do papel que lhe compete. Interessante lê-lo a falar do que gosta. Pena ter fugido apressadamente no fim. Àqueles dois últimos parágrafos, na minha modestíssima opinião, deveria ser mudada a ordem. O João “escondeu-se” e o texto perdeu a apoteose final. Não foi justo para quem o lê. O ator, sem medo, deve esperar pelos aplausos.

E depois deste comentário temerário, fico na expectativa da sua boa vontade para não levar com um ovo na testa.

Isabel X disse...


Não sei muito bem porquê mas a leitura desta reflexão fez-me lembrar a seguinte passagem de um livro que estou lendo agora:

"Os objetivos estão próximos; mas também a vida é curta, e assim se obtém o máximo proveito, e de mais não precisa uma pessoa para ser feliz: porque aquilo que se alcança é que dá forma à alma, ao passo que aquilo que se persegue sem o atingir a deforma. A felicidade depende muito pouco daquilo que se quer, realiza-se apenas com aquilo que se alcança."
- Musil, O homem sem qualidades, 2008, Lisboa, Dom Quixote, I vol., p. 61 -

- Isabel X -