sábado, 31 de março de 2012

Midnight in Paris

1. Um livro, um filme
Há de facto um livro na origem do filme, o livro que Gil quer concluir em Paris. Gil é um guionista de filmes bem sucedido em Holywwod, mas nunca escreveu um livro a sério. Esse é o seu problema.
Desse livro sabemos apenas como começa:
Do passado” era o nome da loja e o que vendia eram memórias. O que tinha sido prosaico, até vulgar, para uma geração, transformara-se, com a simples passagem dos anos, em algo mágico e excepcional”.

2. Um filme sobre cidades
No cinema, a cidade raramente é um mero cenário. A cidade é um actor, mesmo quando se trata de uma cidade literária.
O cinema nasce de e com a metrópole moderna.  Num certo sentido, o cinema, a sétima arte, é a arte da cidade. o seu objecto não é apenas mostrar, é tornar visível o que o não o era na cidade. Tal como a pintura.
“As vezes penso: como poderia alguém criar um livro, um quadro, uma sinfonia, uma escultura, que concorra com uma grande cidade? Impossível. Porque cada rua, cada avenida, é uma forma artística especial” - diz Gil Pender, protagonista do filme.
Uma cidade é uma sobreposição de layers. Mais pesados e mais duros, uns, mais leves e soltos outros. Nem todos se deixam ver, alguns escondem outros. "As cidades como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor do seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa" -  escreveu Italo Calvino.

3. Paris, cidade singular
Diálogo inicial:
- “Mas que maravilha. Não há cidade igual no mundo. Nem nunca houve”.
- “Até parece que nunca cá  estiveste”.
- “Não venho vezes suficientes, é esse o problema”.
E noutro passo: “E pensar que no gélido, violento Universo, por vezes sem significado, existe Paris, estas luzes...? Nada acontece em Júpiter, em Neptuno! Mas do espaço, vêem-se estas luzes, os cafés, as pessoas bebendo, cantando...Paris bem pode ser o local mais excitante do Universo”.

4. Uma homenagem a Gertrude Stein
Allen fez de Gertrude, judia como ele, uma personagem central do filme.
O primeiro dos Stein a chegar a Paris foi Leo, em finais de 1902. Vinha tentar uma carreira de pintor. No ano seguinte, juntou-se-lhe a irmã mais nova, Gertrude, escritora. Michael chegou em 1904, com sua mulher Sarah.  Michael era o garante financeiro da família, com actividade na ferrovia e imobiliário em S. Francisco.
 “Cultos, sensíveis, criados numa família de judeus cosmopolitas, pouco atreitos a convenções sociais, mais próximos da boémia artística que da grande burguesia americana, os Stein vão revelar-se coleccionadores audaciosos e atípicos, desenvolvendo um mecenato inseparável da cumplicidade artística e intelectual”. Compraram Picassos e Matisses, logo em 1905. Gertrude tornou-se amiga de Picasso, que pintou o seu retrato em 1906. Leo ajuda Matisse. Sarah acompanha de perto a obra artística deste ultimo. Compram também Cézanne e Renoir. Em 1914 eram já possuidores de colecções de toda a vanguarda artística. Sem eles, muitos artistas não teriam ido tão longe nas suas propostas mais radicais.
Esta história é uma história de aculturação. Uma família de rendimentos que em termos americanos eram médios, mas em termos europeus altos, adquirem em Paris uma nova identidade cultural, a partir do gosto e da convivência com círculos boémios, recheados de expatriados e estrangeiros de passagem, fomentando círculos informais de artistas e  seus amigos. Pelas suas casas passa semanalmente essa turba numerosa para ver as obras dos pintores de vanguarda comentadas por Leo, Sarah ou Gertrude.
No filme de Allen, Gertrude é retratada como uma matriarca, comentando e discutindo quadros com Picasso, apreciando textos de Hemingway. É ela quem valida o longo romance de Gil Pender intitulado “Do Passado”.

5. Mundos paralelos
O filme de Allen é também um exercício sobre mundos paralelos. Desde logo, entre os planos diurno e nocturno. Aquele é o plano dos hotéis e do turismo, este o da arte e dos artistas, aquele o da Paris dos clichés, este o da Paris surpreendente e mágica. As dicotomias podem ampliar-se: mundo de pedantes, incultos, gente instalada e conservadora, mundo de autenticidade, boémia e entrega.
Gil descobre a passagem de um para o outro mundo, o que evidentemente o perturba, mas que os surrealistas não acham estranho. Man Ray, personagem do filme, exclama: “É isso mesmo, Habitas dois mundos. Para já não vejo nada de estranho.”
No fim, a passagem é afinal uma ponte e o novo romancista pode ter encontrado um novo romance. À chuva, claro.

2 comentários:

Isabel X disse...

Tenho pensado sobre cinema e sobre o que significa para nós.

Walter Benjamin disse que o cinema favorecia o estar em comunidade com o outro vendo o mesmo. Atribuiu ao cinema a capacidade de promover em nós hábitos anlíticos, permitindo transpor para a vida o que nele se passa.

Provavelmente, um dos aspetos mais evidentes deste filme é fazer-nos pensar sobre a tendência para idealizar tempos passados, impedindo-nos de valorizar aquilo que nos rodeia e nos é dado viver.

Paris significa aqui o sonho e, simultaneamente, a distância que o protagonista tece relativamente à (própria) realidade que o integra, e de que ele se quer libertar.

Paris, para além de personagem central, é o cenário próprio para a ocorrência desse fenómeno, no qual colaboram todos os seres invocados pelo protagonista para esse fim.

Quantas coisas acontecem devido a factores que desconhecemos ou não avaliamos em toda a sua dimensão? Afinal, grande parte da relevância adquirida por Matisse, Picasso e outros, deve-se à interferência de Gertrude Stein. (Facto que aprendi aqui).

Cineasta de cidades é o que tem procurado ser (ultimamente) Woody Allen. Há uma boa ideia por trás deste filme. E isso faz dele uma festa!

- Isabel X -

Cláudia S. Tomazi disse...

O sábio quisera silêncio, lago de prazer
e vos a que passeias no passo distinto
que pacíficas santas causas, teu amor
voam por nuvens e singram ao infinito

torrente chuva que d'este faz requinte
levando-te a saudade vertida do sabre
herdando correntezas, corcel em proeza
galopando cidades em se caminhas, pinte

delicado e mui real são traços, tua guarida
umidando mescla extensos, rios saberes
ponteando, fizeras arcos ao horizonte

em afecto, como em pontas estelares
a romântica dintância é espora da medida
malta é universo o singular salto, fora ponte.