quinta-feira, 29 de março de 2012

Memória dos livros

Mundos Paralelos. Exemplos
Recapitulando: se a ficção, por mais realista que se apresente, é constituinte de mundos paralelos, os livros ensinaram-me a transitar entre eles. Com essa chave, que comecei a aprender a manejar em livros aos quadradinhos adquiridos por força de artimanhas várias, tornei-me progressivamente um bibliodependente. Intelectualmente, emocionalmente. Fisicamente. Não é recomendável, eu sei, mas não consegui evitar. Conforme combinado, chegou a hora dos exemplos. Escolhi três. Se já conhecerem algum deles (com a idade, a auto-vigilância sobre a repetição das memórias abranda), passem de imediato ao seguinte.

Amores de perdição
Nunca antes me sentira assim perturbado pela leitura de um livro. Entusiasmara-me com as histórias de Os Cinco e deixara-me encantar pelas aventuras de Gulliver, de Robinson Crusoé ou do Rei Artur com os seus cavaleiros da Távola Redonda. Mas aquele era um livro absolutamente diferente, falava de pessoas e de problemas que eu jamais imaginara e cuja significação, aliás, estava longe de atingir por completo. Uma mulher absolutamente adorável irradiava a sua beleza e o seu amor sobre os homens de uma cidade fascinante, Paris. Um jovem, Armando Duval, enamorava-se dela, e a sua paixão, ingénua mas vigorosa, incómoda mas pura, vencia todos os obstáculos com a coragem que só o amor pode alimentar. Mas não lograva evitar a morte da sua amada, Margarida Gautier, vítima de tuberculose, uma doença incurável no século XIX. Armando aplicou o resto da sua vida a recordar esse seu amor dorido pela mulher cuja beleza o autor do romance (Alexandre Dumas, Filho) espelhava na face de pele aveludada como um pêssego que permaneceu intocado, nos grandes olhos negros, nas sobrancelhas em arco, no nariz fino e direito, nas narinas ligeiramente abertas por uma aspiração de vida sensual (fosse o que fosse que isso pudesse querer dizer), numa boca cujos lábios se abriam graciosamente sobre dentes brancos como leite. À medida que progredia na leitura, apercebia-me confusamente que estava a franquear uma porta até aí fechada, dando entrada num mundo novo, de personagens e de sentimentos até aí ignorados. Ocultava cuidadosamente o livro e só me atrevia a lê-lo à noite, depois de me assegurar que os meus Pais se tinham recolhido ao quarto. No silêncio da velha casa, eu incarnava Armando perdido de amores por Margarida. Suspenso da trama, nem me dei conta, um dia, que o meu Pai abrira a porta do quarto, inquirindo do motivo da luz acesa a hora tão tardia. Não tive tempo de esconder o livro, antes que a lesta mão paterna o tomasse. O meu Pai nem queria acreditar: o seu filho com A Dama das Camélias debaixo do travesseiro. Num misto de estupefacção e irritação, perguntou: onde é que foste buscar este livro? – No sótão, Pai, na arca dos livros que eram do Tio Padre – respondi com a inocência dos 12 anos. Num gesto brusco, o meu Pai recolheu o livro e rumou ao seu próprio quarto, no passo hesitante de quem se interroga sobre como lidar com o incidente.

Tigres no Atlântico
As notícias, vincadas pela voz grave do locutor da Emissora Nacional, não punham em dúvida que se tratava de um acto da mais despudorada pirataria. Um navio de transporte de passageiros, um paquete, tinha sido ocupado pela força e obrigado a desviar o seu rumo. Os motivos dos assaltantes eram pouco explícitos. Sentia-me vagamente tocado pela indignação das autoridades, mas intrigava-me a classificação de piratas dada aos autores. Estávamos em finais de Janeiro de 1961 e eu acabava de dar passos na minha educação literária sobre o fenómeno da pirataria. Emílio Salagari entrara, pelo Natal, na minha estante, conquistando de imediato uma prateleira de primeiro plano. As extraordinárias aventuras relatadas nos seus livros decorriam nos mares distantes da Malásia, onde o corso teria sido prática corrente. Os piratas de Salgari moviam-se por razões nobres, a autonomia e liberdade do povo de Monpracem, subjugado por um poder colonial dominador, servido por governadores sem escrúpulos. Era difícil assimilar ao caso do Santa Maria o que aprendera com a leitura do Tigre da Malásia. Eu procurava encontrar as similitudes, mas as incógnitas superiorizavam-se às certezas. Que território queriam, neste caso, os piratas libertar? Acaso as autoridades portuguesas podiam ser equiparadas às da Inglaterra do século XIX? A pergunta era em si mesma perturbadora, e eu estremecia só de pôr a hipótese. O episódio acabaria depressa, nos primeiros dias de Fevereiro, quando os supostos piratas entregaram o navio às autoridades brasileiras. Pareceu-me então desproporcionada a auto-satisfação do Governo pela vitória alcançada. A verdade é que, tal como os ingleses nunca conseguiram aprisionar Sandokan, a recuperação do Santa Maria não foi acompanhada da detenção nem de Henrique Galvão, o comandante da operação, nem de Humberto Delgado, o chefe dos revoltosos.

Pedro Grande
Quando ele apareceu, logo no primeiro volume, eu soube que ele seria o meu herói. Era um homem grande e desajeitado, que entrava nos salões da aristocracia russa como um elefante na loja das porcelanas. Como todos os meus heróis, a partir daí, era bom e infeliz, generoso e por isso desfrutável, apaixonado e consequentemente incompreendido, absolutamente amável mas destinado a sofrer perante a indiferença e frieza de amantes e falsos amigos. Pedro estava disposto a sacrificar-se até ao fim da vida pelos mais sublimes ideais: o derrube dos tiranos e dos opressores, a paz e a harmonia entre os homens, a igualdade e a fraternidade, a irrecusável liberdade da pátria. Não era um militar mas era um valente, não era um estratega mas era um puro. Encontrei-me com Pedro, aliás Pierre Bézoukhov, em dias que precediam provas exigentes. Guerra e Paz era o que a professora Branquinha tinha para me emprestar quando lhe pedi uma sugestão de leitura naquele momento esquinado. – Preciso de ler qualquer coisa para contrariar o nervosismo, expliquei. Ao entregar-me os cinco volumes da edição Minerva, preveniu-me: - É um grande romance, mas talvez esta altura de exames não seja a mais indicada para o ler. Porque não o guardas para as férias? Não esperei, evidentemente. Pierre não me deixou. Ele sentia-se instrumento de um destino e com essa segurança enfrentava os maiores riscos e desafios. Ao pé dos dele, os meus eram bem mais simples e fáceis. Herdeiro de uma imensa fortuna, que realmente não sabia gerir segundo as regras da acumulação da fortuna, lançou-se na utopia de transformar o mundo. Entendeu começar pelo que estava ao seu alcance: o mundo rural, onde afinal se sentia mais à vontade. O objectivo de emancipação do homem aplicou-o então aos seus camponeses, a quem ofereceu ilustração, liberdade e dignidade. Foi animado por esse exemplo que enfrentei os exames do 5º ano do liceu.

1 comentário:

Cláudia S. Tomazi disse...

Como se possível fosse a árvore evitar de florir ou dos frutos... Crescer.