quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

À janela de António Lobo Antunes

E esta memória remota trouxe-lhe de súbito ao nariz o aroma de bosta de vaca dos derradeiros meses, desde que a telefonia anunciou a independência de Angola decretada por Sua Majestade, no rescaldo de um motim, durante as cortes de Lixboa, o odor do suor, da diarreia, do medo, quando colávamos em pânico os armários aos caixilhos porque daqui a nada uma coronha desventra o aparador, daqui a nada uma sapatilha esmaga o tapete a rir-se, daqui a nada o MPLA principia a disparar ao acaso e as nucas estoiram como figos numa pasta de carne branca e de grainhas vermelhas, o que julgaria o Infante, se vivo fora, lá na escola de Sagres, desdobrando mapas e consultando estrelas frente às janelas do mar, enquanto os seus capitães perseguiam dinamarquesas nas praias de Albufeira e Gil Eanes se apresentava em Lagos, pingando como um noivo exausto, com um ramo de florinhas murchas na mão.

António Lobo Antunes, As Naus, 1988.

1 comentário:

Xico disse...

A imagem de Gil Eanes, navegador solitário, chegando do Bojador com um ramo de flores na mão, frente ao Infante: "pingando como um noivo exausto, com um ramo de florinhas murchas na mão"; é uma delícia.
Que outro marinheiro de outra nacionalidade, traria para o seu amo, que enriquecia com o negócio dos escravos da costa africana, se lembraria de lhe levar flores...