domingo, 8 de janeiro de 2012

À janela de Aquilino Ribeiro

A varanda para D. Henriqueta, não obstante a aversão que votava ao mundo, constituía uma poltrona no vasto salão que era a vizinhança bisbilhotando sobre a rua, de janela para janela, de sacada para sacada. A rua, que corria em baixo, não era rua; o hábito atupira-a, convertendo-a numa espécie de alcatifa, destas alcatifas preciosas que estão nas salas apenas para vista e seria malcriadez trilhar. Achei esta interpretação para a rua, e a inocênciadas velhas donas de Almacave comoveu-me. E devia ser assim, porque a vizinhança sentia-se cabalmente em assembleia, e tanto mais deleitosa que não exigia chinó às velhas, nem toucado trabalhoso às donzelas, nem charão com chá e bolos, o que traz sempre a desordem na família de província.
Nisto, a pragmática da boa gente era simples corno os cordéis do palco antigo. Uma a assomar à janela, tossindo em falso, ou regateando, com artificiosa acrimónia, o preço da molhada ao homem da carqueja, e logo as outras a acorrer. Baixavam as cores ternas da tarde e, entretanto, a cidade e o mundo ali decorriam, no deslize manso e real das figuras que ornam o vero mapa de Marco Polo.

Aquilino Ribeiro, A Via Sinuosa, 1918.

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