quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Coração Acordeão: "por isso aqui estou"

Eu bem sabia que você [Francisco Martins Sarmento], dobrando a página da brochura, acendendo o quinquagésimo cigarro, acolheria o hóspede desenfastiadamente, perguntando-lhe.
- Que faz no castelo de Vermoim a matéria que te cá mandou, espírito?
- A matéria que me cá mandou - responderia o eu com ambições de graça - desde que o amor das cristãs lhe desmiolou a cavidade craniana, anda em cata de moiras encantadas, no ímpio propósito de moirisar-se, se alguma o envolver na madeixas negras, destrançadas com pente de oiro e pérolas. Neste ruim fadário, aquela pobre matéria, onde me acho transmigrado por efeito de não sei que malfeitorias da minha vida anterior, vagamundeia por castelos velhos, pardieiros ensilveirados, e toda a espécie de ruinarias. Eu vou naquele corpo onde me ele leva; porém assim que sinto latejar-lhe no coração alguma saudade de amigo, aperto com ele, espeto-lhe painéis de bem tristes memórias em tudo que possa lisonjear-lhe os sentidos grosseiros, e consigo assim desatar-me da matéria, e avoejar ao amigo, que lhe deu no coração o rebate da saudade. Por isso aqui estou.

Camilo Castelo Branco, No Bom Jesus do Monte. 3a edição. Porto, Livraria Chardron, s/d. p. VIII.

1 comentário:

Isabel X disse...

Sempre presente a ironia, traço mais marcante deste texto. Mesmo quando o assunto é (supostamente?) dramático, como parece ser o caso. Eis Camilo... por isso gosto tanto dele.

- Isabel X -