domingo, 15 de maio de 2011

Leopoldo Roberto (1)

Eugenia fez signal a um francez, que não era principe, nem duque, nem se quer especieiro rico: era um pintor, um amigo querido de Bonaparte.
—Senhor Leopoldo Roberto—disse ella—conhece aquelle portuguez que está falando com a princeza Carlota?
Louis Léopold Robert (1794-1835)

—Fernando?... Conheço-o desde que elle chegou a Florença—respondeu o palido mancebo.—Achei-o um desgraçado.
—Desgraçado?!—atalhou Paulina.—Que infortunios são os d'elle?
—Os extremos: os do amor sem esperança—respondeu o pintor.
Paulina encontrou os olhos de sua irmã, que pareciam dizer-lhe: «ouves?»
Leopoldo Roberto esperou novas perguntas das meninas. Passados minutos, aventurou-se o artista a perguntar:
—Pois não conheciam o seu patricio?
—Foi-nos apresentado pelo principe de Monfort—disse Eugenia—mas dos seus infortunios não sabiamos.
—É de Florença a senhora que elle ama?—perguntou Paulina.
—É de Portugal.
—E elle está em Italia?!—accrescentou Eugenia—porque não vae então para Portugal?
—Andará a viajar para conhecer se ella o ama, e sente a ausencia—disse Paulina.
—A dama está em Florença. A formosa Paulina conhece-a.
—Eu!...
—Sim, minha senhora. Digo-lhe o grande amor de Fernando, e peço-lhe que o salve.
O pintor ia retirar: Paulina exclamou:
—Venha cá... explique-me esse mysterio... Eu conheço a senhora portugueza que Fernando ama?!
—Os anjos de innocencia nem mesmo tem o coração que adivinha?—replicou Leopoldo—Hei de eu por força dizer-lhe que Fernando queria morrer sem que a imprevista Paulina soubesse que o matava?!
As meninas não proferiram um monosyllabo. Leopoldo, o ascetico amante de Carlota Napoleão, approximou-se de Fernando, que falava com a princeza. Levava nos olhos uma alegria desusada. Carlota mudou de local, e o pintor disse a Fernando:
Carlota Bonaparte, retratada por Louis Léopold Robert, 1831

—Quebrei o encanto. Paulina sabe que a amas. É bom que estas mulheres se glorifiquem com saberem os nomes das victimas. Morrer obscuramente!... morrer ignorado da mulher por quem diluimos a vida em lagrimas de sangue! Isso não! é preciso abrir larga fenda no peito, arrancar fóra o coração, e mostrar-lh'o. Então sim! ao menos servimos á gloria da mulher que se amou. Ella, se não póde dizer «amei-o,» diz «matei-o!» e póde ser que o diga com piedade; venha, pois, essa piedade posthuma, que deve ser regalo do cadaver! Que maior serviço posso eu fazer-te, amigo?
Fernando apertou convulsamente a mão de Leopoldo, saiu aos jardins a dilatar o peito, a desdobrar da alegria que vos commove como os assaltos do medo. O pintor não o seguiu, dizendo:
—Vae só, que eu não tenho alegria nem lagrimas que esconder. Recorda-te sempre de mim: propiciei-te o idolo em cujas aras era desconhecido holocausto. Agora pódes acabar, que cumpristes a tua missão. A minha ainda está imperfeita.

Camilo Castelo Branco, Agulha em Palheiro, 2ª edição, 1865. p. 112-117.

11 comentários:

Isabel X disse...

Belíssimo este sentido trágico do amor, aqui presente em Camilo e na vida de Leopoldo Roberto.

O que mais me impressiona neste excerto é a necessidade, sentida por Fernando, de dar a conhecer o amor silencioso de Leopoldo por Carlota, a quem o viria a revelar à amada.
Parece-me que sim, que fez bem. A prová-lo a intensidade das palavras com que justifica o que fizera perante o visado, o próprio Leopoldo.

- Isabel X -

Xico disse...

Isabel X
Mas neste excerto, absolutamente romântico, é Leopoldo quem revela a Paulina, o amor de Fernando.Ou tresli?
Quanto à paixão de Leopoldo por Carlota, a julgar pelo retrato que o pintor fez, são insondáveis os mistérios do amor. Porque a princesa não tinha gracinha nenhuma. Mas isto sou eu já sem paciência para o romantismo, apesar de amar Camilo.
O amor alimenta-se mais do sentimento idealizado do que da coisa amada. Isso tornou-se mais que evidente desde que o jovem Werther resolveu suicidar-se, esquecendo que havia seguramente outra solução.

João B. Serra disse...

Neste que é um dos romances que mais aprecio na obra de Camilo podemos observar a construção do processo romanesco, que inclui o recurso a personagens reais, conferindo plausibilidade aos acontecimentos narrados. Implica a disponiblidade de uma informação muito completa e diversificada, tanto mais que a acção, neste caso, se passa fundamentalmente em cidades estrangeiras que Camilo não terá visitado. No caso, Florença, onde aliás muitos escritores do século XIX e XX situaram os seus romances.

Isabel X disse...

Tem razão quanto à minha confusão das personagens, Xico. Agradeço-lhe o reparo.

Ainda sob a influência da impressão causada pelas circunstâncias da vida real de Leopoldo, que conheci aqui neste blogue, parti do princípio de que seriam os seus amores a estar em causa no livro de Camilo. Fui precipitada. Quem "tresleu" fui eu. Fui "enganada" pelo tal recurso a personagens reais, mas adaptadas ao enredo romanesco, de que fala o autor do blogue no seu esclarecimento, que também agradeço.

Quanto ao retrato de Carlota, ao contrário de Xico, pareceu-me ver nele uma mulher com lindos olhos tristes, longe dos padrões actuais de beleza, mas retratados por alguém apaixonado, sim.

Claro que nunca é em quem é amado que devemos procurar a razão desse amor, mas sim em quem ama. É nessa outra pessoa que se encontra a beleza do que sente, a chave desse amor.

Adoro Goethe e Werther é uma das suas obras de eleição, para mim. É dificil imaginar agora alguém sentir o que ele descreve quando vê a sua amada a cuidar dos irmãos, por exemplo. A culpa que ele sente por amar alguém que é noiva do seu melhor amigo. Compreender o crescendo de sofrimento que o conduz ao suicídio. Mas que nos falta heroísmo, tragédia e grandeza que podemos encontrar nessas obras românticas, e que isso só diminui quem não as entende e não a quem as escreveu, disso não tenho dúvidas.

- Isabel X -

João B. Serra disse...

A relação de Carlota com Leopoldo não foi apenas a relaçao pintor-modelo, mas também a relação mestre-discipula, uma vez que ele foi professor de pintura dela. Resta acrescentar que Carlota, teve após o falecimento do marido, uma relação com um conde polaco. Uma gravidez de risco, aos 37 anos, levou-a à morte, durante o parto, em 1939.

João B. Serra disse...

Perdão, em 1839.

Xico disse...

Consigo apreciar a beleza da escrita de Goethe, mas não me peçam para compreender o jovem Werther (e os jovens que lhe seguiram). Eu aprecio mais a ligeireza com que o tema é tratado em Beuamarchais e em Mozart. O romantismo, conhecido pelo "mal du siécle", foi gerador de muita desgraça na Europa, quer política quer no campo dos amores (gente desocupada diria eu, no caso dos amores). Diz-se que as descobertas acontecem por necessidade dos tempos. Freud é bem o resultado dessa necessidade para compreender o romantismo. Ao jovem Werther faltou-lhe uns anos em Coimbra. Não que lá não houvesse suicídios, mas não por amores impossíveis.
Isabel X, permita-me este atrevimento e esta provocação que é só fruto da estima que tenho pelo autor do blogue e seus comentadores.

Xico disse...

E depois acho (quem sou eu?) que Camilo ironiza com o tema e o absurdo desses amores até à morte,na fala do pintor ao português. "Se tens que morrer, ao menos que ela saiba..."
Camilo era demasiado lúcido para ser romântico. E foi um dos nossos maiores românticos. Quer nas letras quer na sua própria vida, e na morte.

Isabel X disse...

Bem, Xico, da inevitabilidade da morte todos sabemos, românticos ou não. Conhecer (ou escolher) o momento da sua ocorrência é que não é comum.

Talvez haja ironia em Camilo (sempre bem vinda, desde que não atinja o sarcasmo) na frase que cita, mas que há uma atractividade intrínseca à ideia de morrer de amor, isso niguém pode negar.
Já que se tem que morrer...

Aliás, o próprio Camilo escolheu suicidar-se, já não por amor talvez, mas pela desilusão causada pela experiência de um amor gasto pela vulgaridade dos dias de que se fez a sua própria vida.

- Isabel X -

Cláudia S. Tomazi disse...

Há uma discussão delicada e peço desculpa, por desviar do assunto principal, mas é interessante que Durkheim foi um dos primeiros sociólogos a estudar seriamente o fenômeno do suicídio. O fato é que ao longo da história houve centenas de pessoas inteligentes que puseram fim às suas vidas. Portugal relativamente tem dessas histórias: Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, Mário de Sá Carneiro, Florbela Espanca. E, fora: Ernest Hemingway, Kurt Cobain, Ian Curtis, Roland Barthes, Walter Benjamin, Mishima, Guy Debord, André Gorz, Cleópatra, Virgínia Woolf, Primo Levi, Stefan Sweig, Anna Karenina, Sylvia Plath, Gilles Deleuze, Guy de Maupassant, Vincent van Gogh , Holderlin... Mais de 700 casos sendo, seis prêmios Nobel, inúmeros prêmios Pulitzer. Quando o próprio Camilo Castelo Branco, disse "o suicídio não é uma coragem vulgar. Suicidam-se os que se desprezam a si e ao mundo”. E é de Sócrates a ética – Críton, devemos um galo a Asclépio, não esqueça de pagar esta dívida. E, porque é que se matam escritores, músicos e filósofos, artistas e pensadores, homens e mulheres de espantosa inteligência e formação?

Cláudia S. Tomazi disse...

Como responsável pelo questionamento, lanço a humilde visão, pelo que nada justifique o ato de tirar a própria vida.

Do controle, vazão.
No contrato, razão.
Ao conforto, perdão.

Dira necessitas – Necessidade funesta
Horácio (Quintos Horatius Flaccus)

Esta expressão foi usada por Horácio numa de suas Odes, na qual culpa os ricos, porque no cuidado com seus tesouros, quase se tornam prisioneiros deles. “Si figit adamantinos summis verticibus dira necessitas davos, non animum metu, nom mortes laqueis expedies caputi” ( Se fixares nos mais altos vértices a funesta necessidade com pregos de aço, não livrarás do medo teu espírito e tua cabeça dos laços da morte).