sábado, 12 de março de 2011

Ainda a propósito de Guimarães Rosa, escritor da língua

Por portas travessas, fui referindo atrás uma velha ideia minha: o compromisso do poeta não é com os leitores, mas tão-somente com a língua. Ora a língua é a única herança que nos coube em sorte, e não é pequena, como se sabe. No meu caso, tal herança, em mais de um sentido é materna. É com esses vocábulos que interrogo a memória, num desejo insensato de preservar certos instantes; e como todos já sabem, a minha memória está cheia de rumores de águas, também destas águas; está cheia do branco dos muros, também destes muros; está cheia da poeira dos caminhos, também destes caminhos. Porque durante toda a minha infância, todas as vozes, todos os cheiros, todos os sabores pertenciam a estas terras, terras com nomes palpáveis: Póvoa, Atalaia, Castelo Branco, Fundão, Alpedrinha, Monfortinho, Castelo Novo, Covilhã, nomes "porosos" como lhes chamei um dia, nomes que se deixam atravessar pelas maternas águas da memória.

Eugénio de Andrade, "Palavras no Fundão", in À Sombra da Memória. 2ª edição. Vila Nova de Famalicão, Quasi, 2008. p. 108.

1 comentário:

Isabel X disse...

Palavras que fazem ver, amanhcentes, iluminantes, estas, do poeta Eugénio de Andrade.

O compromisso do poeta é com a língua, sua única herança, "não pequena", materna.

Língua para interrogar: a memória; as vozes; os caminhos; os muros; as terras com nomes "palpáveis", nomes "porosos" (como a própria terra; os sabores...

..."desejo insensato de preservar certos instantes", isso é o que a poesia é.

Tão lindo! Um mundo renovado, assim.

- Isabel X -