quarta-feira, 7 de julho de 2010

Sei lá!

De vez em quando esbarrava nas árvores e candeeiros públicos.
Por este simples motivo: o de me esquecer de olhar para o caminho, afundado em meditações desta espécie:
Personalidade? Que significa essa história de ter, ou de não ter, personalidade? Existe alguma fórmula de elixir secreto ou qualquer aparelho de delicadeza pesquisadora especial que nos permita determinar imediatamente, sem receio de nos enganarmos, se alguém possui esse dom misterioso? Um certo azul nos olhos? O queixo levantado? A maneira majestosa de subir para o autocarro? Ou de entrar nos apertões do Metro, afastando com os dedos, em piparote, a muralha de pedras vivas que impede a passagem para os corredores vazios? Certos raios magnéticos com que as mulheres nos fulminam, obrigando a agachar os homens até ao destino de capachos? As jubas de leões invisíveis de certos calvos hieráticos? O silêncio sistemático do Pacheco de Eça? As palavras ocamente acrobatas de certos frequentadores de salas e bares?
Sei lá!

José Gomes Ferreira, Calçada do Sol. Diário Desgrenhado de um Homem Qualquer Nascido no Princípio do Século XX. Lisboa, Livraria Morais, 1983.p. 71
José Gomes Ferreira retratado por Mário Dionísio

8 comentários:

Isabel X disse...

Ao contrário do que se julga, não é bom sinal "esbarrar" em "árvores" e "candeeiros públicos" por ir "afundado" em "meditações". É exactamente a atenção àquilo que nos envolve em cada momento que nos permite descobrir aquilo que realmente importa dentro de nós.

Desse modo nascerão interrogações bem mais fecundas do que: "Personalidade?" à qual é natural que se responda: "Sei lá!"

Todos os exemplos que são aqui apontados como indícios de personalidade são, na maior parte das vezes, defesas que cada um aprendeu a ter face ao mundo. Somos todos tão vulneráveis...

Mas gosto muito do quadro de Mário Dionísio!

- Isabel X -

Cláudia disse...

"palavras ocamente acrobatadas"...
Muitas dizem nada, outras tantas ao nada, dizem.

João B. Serra disse...

José Gomes Ferreira tinha a idade do século: nasceu em 1900. No fim da vida (morreu em 1985) vivia na Avenida Rio de Janeiro, perto da escola onde leccionei durante praticamente 7 anos (entre 1971 e 1978); o liceu do Padre Antonio Vieira. Encontrava-o pois frequentemente. De facto, ele esbarrava algumas vezes com árvores e candeeiros, obstáculos colocados traiçoeiramente no seu caminho de poeta distraído. Esses acidentes eram proverbiais e talvez fossem potenciados pela sua enorme estatutura.

Isabel X disse...

Isso é verdade! Não deviam ser só as meditações e o ensimesmamento de José Gomes Ferreira que o levavam de encontro aos candeeiros e a outros obstáculos. Há pessoas naturalmente um pouco desajeitadas de modos, "tragalhadanças", como se costuma dizer. A idade tende a agravar essas características.

Um reparo: linda a frase final da Cláudia: um trocadilho que tanto diz!

- Isabel X -

António disse...

Caro João,

Tão injustamente esquecido !

Ainda há que se lembre dele, bem hajas, João !

Um abraço

António disse...

De súbito, o diabinho que me dançava nos olhos,
mal viu a menina atavessar a rua,
saltou num ímpeto de besouro
e despiu-a toda...

E a Que-Sempe-Tanto-Se-Recata
ficou nua,
sonambulamente nua,
com um seio de ouro
e outro de prata.

Poema de José Gomes Ferreira

Isabel X disse...

Afinal José Gomes Ferreira, dependendo daquilo que via, tinha atenção ao que o rodeava!...

A crer neste seu poema!...

- Isabel X -

António disse...

O poeta fingia que não via a mulher que passava, mas via.