sábado, 1 de agosto de 2009

Memórias

1. As tabernas do Carvalhal
Conhecia o restaurante, aliás uma singularidade nacional, mas não o seu proprietário. Um dia, porém, eis que uma sobrinha dele, então com 13 anos, me enviou um mail com um estranho pedido: uma descrição da casa rural portuguesa de 50 anos antes. A justificação percebia-a pouco depois: Visanee Stamtee, a jovem sobrinha de Humberto Silva, era tailandesa e a habitação comum que tinha na memória, conforme postal que me enviou, era bem diferente da nossa.
Pois bem, Humberto Silva abriu um restaurante em Lisboa, vendeu o que tinha nas Caldas. Mas agora, temporariamente retirado da actividade, regressou à sua terra natal, o Carvalhal. Há cerca de um mês, enviou-me um mail onde confessava que “confrontado com muito tempo livre”, decidira “registar algo do meu interesse pessoal e que ao mesmo tempo abordasse a história da minha terra”. O tema escolhido só podia ser o da restauração, mas não havendo memória de restaurantes “no Carvalhal, virei-me para as tabernas, e, para ser um pouco mais interessante, as da década de 50 do século passado”. Em seguida, contava que tinha procurado inspiração no meu livro Continuação. “Queria agradecer-lhe pela inspiração que me contagiou – dizia-me no seu mail. Escrevi de uma forma simples mas honesta sobre o Carvalhal daquela época”. E rematava: “Agora que acabei, envio-lhe uma cópia. Espero tenha oportunidade de ler, e que seja do seu agrado, ficarei ansioso por receber um comentário ou observação da sua parte”
Aqui vai então o meu comentário breve. As suas memorias das tabernas do Carvalhal lêem-se de um fôlego. São memórias ricas de história, povoadas de gente autêntica, de vida, recheadas de episódios e personagens da nossa vida rural de há meio século, hoje desaparecida. Obrigado por se dedicar a reconstituir e lembrar esse mundo. Foi nele que nasci, é nele que estão as raízes de muita gente hoje dispersa pelo mundo inteiro. Espero que o seu trabalho de escrita possa ser mais conhecido e divulgado.
2
Foz do Arelho, sessão de homenagem a Francisco de Almeida Grandela, no ano do centenário da escola primária que ele mandou construir e ofereceu à população do lugar e ao Estado. Presença do Presidente Mário Soares que aproveitou a ocasião para desfiar memórias da sua adolescência e juventude na Foz. Memórias que passaram pela evocação de Daisy Grandela e Luís Grandela, filhos de Francisco. Mas o episódio mais interessante reservou-o Mário Soares para a história do professor Moreira, professor primário que na escola Grandela, nos anos negros da 2ª Guerra ligava o seu rádio para ouvir a BBC, e ali recebia a visita do jovem Soares e mais dois ou três amigos que a ele se juntavam nesse acto clandestino e perigoso de ouvir notícias da frente democrática em guerra com o nazismo.
3
O meu tempo da Foz é distinto e dele já deixei memórias tanto em Continuação como na Cidade Imaginária. Desta vez foram memorias de outrem que vieram ao meu encontro. A Senhora D.ª Amália, neta da senhora que nos alugava a sua casita pintada de azul, já no fim da povoação, perto da colónia de férias do Colégio Moderno, procurou-me quando percorríamos o caminho entre a Junta de Freguesia e a Escola Grandela. Também aqui há meio século de permeio. Recordámos o burrito da avó da então Amália, as brincadeiras de criança, e interrogamo-nos silenciosamente sobre as outras memorias que não podemos partilhar. Os caminhos da emigração esperavam a menina que vinha passar a tarde comigo e com a minha irmã. Essa é outra história dos destinos do nosso mundo rural de há meio século. Coincidente, neste aspecto com os passos de Humberto Silva, também ele emigrante.

3 comentários:

Anónimo disse...

O TEMPO corre,corre,corre...
E quem disser que não guarda memória das suas MEMÓRIAS...é porque mente!
MV

João Ramos Franco disse...

Caro João Serra
Partilhar as “Memórias” do universo rural da nossa Cidade, com a sensibilidade com que o retratas num exercício de nos contar factos reais, com as personagens que te acompanham no recordar. Que poderei acrescentar eu um nostálgico dessas mesmas memorias…
- Como poderei adquirir o teu livro Cidade Imaginária? Gostava de o ler.
Um abraço amigo
João Ramos Franco

Isabel X disse...

Conversando com o Dr. Mário Soares, de quem ouvi mais umas quantas memórias bem giras, pude aperceber-me de que ele não gosta de que o tratem por presidente. Diz que já foi mas agora não é. Acabámos por concordar que essa atitude é em si mesma republicana. Só um rei o é toda a vida...

Julgo que o professor em causa, segundo pessoas da Foz ali presentes, era o Professor Moreira de quem todos gostavam muito.

Para alguém como eu que tanto valorizo a memória e as memórias, ter a oportunidade de ouvir alguém como o Dr. Mário Soares desfiar as suas, é uma experiência fascinante. Aliás,segundo o próprio, concluiu naquele dia 55 horas de filmagens que vão dar origem a uma série televisiva de oito horas, com depoimentos seus sobre a sua vida, que o mesmo é dizer com a História (digo eu).

Quanto às memórias do João, além de nos darem um quadro muito expressivo das vivências e atmosferas da sua juventude, têm o condão de fazer recordar coisas esquecidas a quem não tem tão boa memória como desejaria. Mas não partilho da sua opinião: gosto até bastante do estilo de escrita do autor enquanto jovem.
- Isabel X -