sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Guião para as Caldas (uma proposta)

Na segunda metade do século XIX, quando “mudar de ares”, no Verão, entrou nos hábitos das elites urbanas, Caldas da Rainha tornou-se um destino quase obrigatório. Além da família real, com residência dedicada na vila, nomes sonantes da política, dos negócios, da vida intelectual, ali permaneciam duas semanas entre finais de Julho e princípios de Setembro, em hotéis, pensões, casas alugadas. A imagem que das Caldas se construiu então, e perdurou pelo século XX, é em boa medida uma imagem literária, alimentada pelo encanto, pela ironia, pela nostalgia dos nossos escritores (a título de exemplo: Júlio César Machado, Pinheiro Chagas, Eduardo Coelho, Fialho de Almeida, Abel Botelho, Manuel de Sousa Pinto, Augusto de Castro, António Ferro, Luís Teixeira).
Vivia-se na povoação um tempo de euforia. Acreditava-se na possibilidade de transformar as Caldas numa das mais importantes estâncias termais da Europa. O caminho de ferro, inaugurado em 1887, colocava-a ao alcance de qualquer viajante, português ou estrangeiro, vindo do Norte ou de Lisboa. A vila dotava-se sucessivamente de equipamentos modernos: uma calçada para o mercado, no Rossio, doravante reservado a produtos mais nobres, uma nova Praça para venda dos restantes géneros, uma sala de espectáculos, uma praça de touros. E as velhas Termas, criadas no século XV, com a sua originalidade - um Hospital de internamento e corpo clínico permanente - eram igualmente submetidas a um processo global de remodelação: mais dois hospitais construídos de raiz, um para doenças gerais (Santo Isidoro) e outro para termalistas (D. Carlos I), um grande parque com áreas de lazer e desporto adequadas às novas exigências do público endinheirado e mundano.
Praticamente em simultâneo, ocorria uma revolução na manufactura mais emblemática das Caldas, desde o tempo da Rainha fundadora, D. Leonor: a cerâmica. Na segunda metade do século XIX, uma brilhante geração de ceramistas, entre os quais o destaque maior vai para Manuel Cipriano Gomes "Mafra", Francisco Gomes de Avelar, José Alves Cunha e José Francisco de Sousa, integrou-se na corrente "neo-palissy", povoando a sua louça de formas e decorações naturalistas, cobertas por impressivos vidrados, com destaque para o verde esmeralda e o amarelo mel. A cerâmica caldense obteve então grande projecção em Portugal e até no estrangeiro (Inglaterra, Países Baixos, Brasil, Estados Unidos). Em 1884, instalar-se-á nas Caldas um dos artistas mais populares e criativos na época, Rafael Bordalo Pinheiro, ali desenvolvendo ininterruptamente, até 1905, data da sua morte, uma espantosa colecção de novos modelos que percorreram todos os campos da produção cerâmica: da telha e tijolo à louça de mesa em faiança produzida industrialmente. Mas foi no azulejo e na louça decorativa que o génio de Rafael Bordalo Pinheiro atingiu uma capacidade plástica e inventiva de excepção.
Confiante, a vila, cuja população crescia rapidamente, renovou as fachadas dos seus prédios de habitação e de comércio, recorrendo ao jogo de cantarias, ao ferro forjado e ao azulejo, num cosmopolitismo onde avultam as influências da “arte nova”.
Na vida do núcleo urbano caldense, momentos como este, de profunda reforma urbanística associada às Termas, tinham paralelos históricos. Desde logo, o momento da fundação propriamente dita, na qual são mobilizados objectivos e meios de uma grande princesa renascentista, a Rainha D. Leonor, mulher e irmã de reis, que reorganizou o sistema de assistência da época e foi mecenas das artes e das letras. O plano do Hospital e da sua Igreja – ambos consagrados a Nossa Senhora do Pópulo, provavelmente por sugestão de um conselheiro da Rainha, cardeal em serviço na cúria romana e devoto de Santa Maria Del Populo – foi confiado a mestres do Mosteiro da Batalha. A Rainha administrou pessoalmente o estabelecimento e foi nesse quadro de “corte na vila” que, por exemplo, um auto de Gil Vicente foi na Igreja representado em 1504.
Uma segunda fundação ocorre em meados do século XVIII, também por iniciativa régia, de D. João V, monarca de tempos áureos. As estruturas termais, herdadas do século XV, estavam envelhecidas e degradadas e o Rei quis corresponder às sugestões dos seus conselheiros que acreditavam nas virtudes salvíficas das águas termais comprovadas pela Medicina e pela Química modernas. Assim, um novo Hospital foi erguido (é o que hoje existe, acrescentado de um piso no século XIX), a Câmara Municipal dotada de edifício próprio, no Rossio, e um sistema de abastecimento de águas à vila desenhado e realizado. Tudo isto sob a direcção dos engenheiros que meia dúzia de anos mais tarde iriam ser incumbidos da reconstrução da Lisboa devastada pelo terramoto (1755).
Em 1927, a vila das Caldas da Rainha foi elevada ao estatuto de cidade. Aproximava-se dos 8000 habitantes (em 1852, seriam 2000, números redondos, 2700 em 1878 e 4600 em 1900). Na altura eram raras as cidades que não fossem sedes de distrito, e, de Lisboa para Norte, era a primeira, numa distância de mais de uma centena de quilómetros. As elites locais procuraram fazer dessa conquista política uma alavanca para consolidarem as valências herdadas e projectarem novas. Entre as herdadas estavam as Termas, a polarização de uma região agrícola com produções de qualidade, e a cerâmica. As novas valências eram: um urbanismo equilibrado entre o novo e o antigo (sob a responsabilidade do arquitecto Paulino Montês), um envolvimento com a actividade artística (Malhoa, um Museu de raiz criado no contexto das comemorações nacionalistas dos Centenários, em 1940) e uma aposta no comércio e nos serviços, incluindo o turismo de praia, diversificando as actividades económicas.
Esta aposta estratégica foi razoavelmente sucedida, ancorada na circunstância de a cidade ter permanecido na rota do principal eixo viário do País, até aos anos 1960, e ter beneficiado do nascimento, estadia ou naturalização de um lote excepcional de intelectuais, como Costa Mota, Francisco Elias, Hansi Stael, Ferreira da Silva (ceramistas), António Duarte, João Fragoso, António Vitorino, Afonso Duarte Angélico, Martins Correia, Júlio Pomar, António Quadros, Artur Bual, José Aurélio (artistas plásticos), Raúl Proença, David Mourão Ferreira, Manuel Ferreira, Luís Teixeira, Mário Castrim, Santos Fernando, Luís Pacheco (escritores). Para um ambiente urbano arejado e desenvolto que se viveu nos anos 50 e 60 também terá contribuído a circunstância de os caldense terem sido surpreendidos, a partir de Julho de 1940 com a chegada de centenas de refugiados da II Guerra. "Inesperadamente – noticiava o semanário local - automóveis estrangeiros começaram a parar nas ruas da cidade, enquanto muitos outros, atulhados de bagagens, se dirigiam para o sul. (...) Os hotéis ficaram cheios de estrangeiros: austríacos, ingleses, franceses, americanos, belgas e holandeses.(...) Gente estranha, de todos os credos políticos e de todas as religiões (...)".
A década de 1960 trouxe consigo um elemento perturbador da posição caldense, quando o tráfego rodoviário Lisboa-Porto deixou de passar pela cidade, que só voltaria a recuperar vantagem em acessibilidades com a conclusão das ligações por auto-estrada a Lisboa, Leiria e Santarém, mais recentemente.
Pode dizer-se que as últimas três décadas do século XX foram o palco das hesitações e dificuldades de todas as cidades portuguesas, designadamente as do litoral. Nas Caldas,o  termalismo foi lento a modernizar-se e perdeu a liderança nacional, face à concorrência de outros centros com uma gestão especializada. A pressão urbanística, embora sem a violência de outras paragens, não deixou de se fazer sentir, e o turismo de massa, associado às praias, também atingiu as Caldas. As elites locais tentaram por todos os meios evitar a periferização, perante a concorrência de outros centros regionais, mas nem sempre terão sido bem sucedidas ou avisadas nesse objectivo.
A cidade conservou, como pôde, o seu património termal, que não desistiu de ver dignificado e projectado para o futuro. Conservou a vivacidade do seu mercado de géneros diário em praça aberta, no cenário do antigo Rossio. Conservou um comércio tradicional que é um factor de animação económica e social. Conservou a sua histórica disponibilidade para a valorização das artes, acrescentando ao Museu de José Malhoa novas colecções e instituições museológicas. Procura projectar a sua experiência histórica numa Escola de Artes e Design de cujo curriculum de prémios nacionais e estrangeiros justamente se orgulha. É uma cidade aberta que conserva vivas as marcas, por vezes contraditórias, da urbanidade moderna.

3 comentários:

Isabel X disse...

Não sei como é possível fazer a síntese da História de uma cidade e, simultaneamente, um quase diagnóstico sobre o quanto essa História a especifica, de um modo tão eficaz! Não é um elogio; é uma constatação!
A propósito de fases aureas desta cidade, lembrei-me de um artigo do Círculo das Caldas (12 de Abril de 1896) que diz: "Poucas terras existirão no país que, como as Caldas, devam menos à iniciativa dos seus habitantes. Aqui discute-se, projecta-se e censura-se, mas não se passa disso. (...) Os caldenses têm de mudar de rumo (...). Não fiar que a fortuna continue a deparar-nos benefícios de pessoas estranhas a esta localidade que tenham a paciência de suportar a ingratidão com que costumamos pagar os favores que recebemos.
Não fiar nisso.
A virtude não se depara por aí a todo o passo."
- Isabel X -

Paulo G. Trilho Prudêncio disse...

Muito belo.

Abraço.

João Ramos Franco disse...

Caro João Serra
Para mim mais que um simples, "Guião para as Caldas (uma proposta)", estou sempre a aproveitar para aprender.
Um abraço
João Ramos Franco