segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Ulisses e a perfeição (II)

2. A percepção de Calipso
(…) Então Calipso, pensativa, lançando sobre os seus cabelos anelados um véu da cor do açafrão, caminhou para a orla do mar, através dos prados, numa pressa que lhe enrodilhava a túnica, à maneira de uma espuma leve, em torno das pernas redondas e róseas. Tão levemente pisou a areia que o magnânimo Ulisses não a sentiu deslizar, perdido na contemplação das águas, com a negra barba entre as mãos, aliviando em gemidos o peso do seu coração. A deusa sorriu, com fugitiva e soberana amargura. Depois, pousando no vasto ombro do herói os seus dedos tão claros como os de Eos, mãe do dia:
- Não te lamentes mais, desgraçado, nem te consumas olhando o mar! Os deuses, que me são superiores pela inteligência e pela vontade, determinam que tu partas, afrontes a inconstância dos ventos e calques de novo a terra da pátria…
Bruscamente, como o condor fendendo sobre a presa, o divino Ulisses com a face assombrada, saltou da rocha musgosa:
- Ó deusa, tu dizes!...
Ela continuou sossegadamente, com os formosos braços pendidos, enrodilhados no véu cor de açafrão, enquanto a vaga rolava, mais doce e cantante, no amoroso respeito da sua presença divina:
- Bem sabes que não tenho naves de alta proa, nem remadores de rijo peito, nem piloto amigo das estrelas, que te conduzam… Mas certamente te confiarei o machado de bronze que foi de meu pai para tu abateres as árvores que eu te marcar e construíres uma jangada em que embarques… Depois eu a proverei de odres de vinho, de comidas perfeitas e a impelirei com um sopro amigo para o mar indomado…
O cauteloso Ulisses recuara lentamente, cravando na deusa um duro olhar que a desconfiança enegrecia. E, erguendo a mão, que tremia toda com a ansiedade do seu coração:
- Ó deusa, tu abrigas um pensamento terrível, pois que assim me convidas a afrontar numa jangada as ondas difíceis onde mal se mantêm fundas naves! Não, deusa perigosa, não! Eu combati na grande guerra onde os deuses também combateram e conheço a malícia infinita que contém o coração dos imortais! Se resisti às sereias irresistíveis e me safei com sublimes manobras de entre Cila e Caríbdis e venci Polifemo com um ardil que eternamente me tornará ilustre entre os homens, não foi decerto, ó deusa, para que agora caia em armadilha arranjada com dizeres de mel.
(…) Assim bradava à beira das ondas, com o peito a arfar, Ulisses, o herói prudente… Então a deusa clemente riu, com um cantado e refulgente riso. E, caminhando para o herói, correu os dedos celestes pelos seus espessos cabelos mais negros que o pez. (…) O divino Ulisses retirou lenta e sombriamente a cabeça da rosada carícia dos dedos divinos:
- Mas jura… Ó deusa, jura, para que ao meu peito desça, como onda de leite, a saborosa confiança!
Ela ergueu o claro braço ao azul onde os deuses moram:
- Por Gaia e pelo Céu superior, e pelas águas subterrâneas do Estígio, (…) juro, ó homem, príncipe dos homens, que não preparo a tua perda nem misérias maiores…
O valente Ulisses respirou largamente. E, arregaçando logo as mangas da túnica, esfregando as palmas robustas:
- Onde está o machado de teu pai magnífico? Mostra as árvores, ó deusa!... O dia baixa e o trabalho é longo!
- Sossega, ó homem sôfrego de males humanos! Os deuses superiores em sapiência já determinaram o teu destino… Recolhe comigo à doce gruta, a reforçar a tua força… Quando Eos vermelha aparecer, amanhã, eu te conduzirei à floresta.
Era, com efeito, a hora em que os homens mortais e os deuses imortais se acercam das mesas cobertas de baixelas, onde os espera a abundância, o repouso, o esquecimento dos cuidados e as amoráveis conversas que contentam a alma. Em breve Ulisses se sentou no escabelo de marfim. (…) E logo que deram a oferenda abundante à fome e à sede, a ilustre Calipso, encostando a face aos dedos róseos e considerando pensativamente o herói, soltou estas palavras aladas:
- Ó Ulisses muito subtil, tu queres voltar à tua morada mortal e à terra da pátria… Ah! Se conhecesses como eu quantos duros males tens de sofrer antes de avistares as rochas de Ítaca, ficarias entre os meus braços, amimado, banhado, bem nutrido, revestido de linhos finos, sem nunca perderes a querida força, nem a agudeza do entendimento, nem o calor da facúndia, pois que eu te comunicaria a minha imortalidade! Desejas voltar à esposa mortal que habita a ilha áspera onde as matas são tenebrosas? E todavia eu não lhe sou inferior, nem pela beleza, nem pela inteligência, porque as mortais brilham ante as imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras…

Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.

1 comentário:

Júlia disse...

ATENÇÃO!

A desconfiança torna negra a visão do outro e do mundo! Confiemos, pois, em absoluto, na palavra das meninas, boas e más, ainda que, perante a pura luz das divindades, que encandeia e incendeia, as mortais não passem de "lâmpadas fumarentas".