quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Crónicas micaelenses - 5 (última)


A última desta serie de crónicas micaelenses regista a impressão geral de um visitante empenhado e exala a nostalgia própria de quem em breve retomará  as circunstancias da função habitual, após quatro dias de excepção.
Neste dia - Domingo, 26 de Agosto - a meteorologia anunciou bem cedo que recuperara o seu estado "normal" sanmicaelense : neblinas cerradas na zona montanhosa, aguaceiros com algumas abertas na zona litoral.
A instabilidade do tempo afecta certamente o turismo da ilha e da região. A crédito da gestão de Carlos César, que decidiu pôr termo ao seu compromisso de governo, não se apresentando a sufrágio em Outubro próximo, ficará sem dúvida o incremento do turismo açoriano. As diversas ilhas viram melhoradas as suas estruturas aeroportuárias e hoteleiras. No caso de ponta Delgada, além das novas unidades hoteleiras, espalhadas por toda a ilha, o Governo procedeu a uma reformulação da frente marítima que foi preparada para receber navios de cruzeiros.
Pergunto ao meu amigo C. R. se não terá havido alguma precipitação no investimento em grande unidades de 4 e 5 estrelas, num modelo que parece mais próximo do da Madeira, que todavia beneficia duma estabilidade meteorológica singular.
C. R.  acha que o segmento de turismo que parece mais sólido nos Açores é o turismo ambiental, nas suas diversas especialidades, desde a observação de cetáceos até à vulcanologia. O modelo adoptado no Pico parece-lhe o mais adequado e porventura o que poderia ser replicado noutras ilhas, convocando saberes não apenas da área da economia e da gestão mas também das ciências da natureza e da história e conjugando sabiamente turismo, património e cultura.
A cidade de Ponta Delgada não escondeu os sinais das cidades próprios da crise do modelo de desenvolvimento comandado pela finança dos produtos financeiros. Notei o recuo da euforia e confiança exibido há três e quatro anos. A ausência de um programa cultural urbano de qualidade que enobreça e atraia habitantes e visitantes ao espaço publico também contribui para essa impressão de recuo. A gestão tradicional das cidades, e Ponta Delgada é disso exemplo, não percebe que é exactamente em contraciclo que o investimento cultural mais se justifica e reproduz.
A única casa onde ha muito se vendia artesanato certificado fechou. Invariavelmente as lojas de recordações para turistas exibem produtos sem originalidade nem qualidade. O design urbano parece ter desertado de Ponta Delgada, e com ele os indicadores de modernização do ambiente urbano. Com a excepção da loja do mercado, referenciada na crónica anterior, os queijos, bolos, compotas, bordados e rendas que se encontram à venda em lojas urbanas são de pouco qualidade.
Gostaria de destacar, no entanto, o esforço de promoção que a fabrica Vieira está a fazer da sua louça de faiança azul e branca. Em pacotes de açúcar,  surgem diversos motivos etnográficos em desenhos idênticos aos de uma colecção de pratos de suspensão. Vi uns e outros em diversos cafés e restaurantes, mas não vi a uso os serviços fabricados na empresa.
Criada em Lagoa em 1862, a história da cerâmica Vieira é uma história notável de 150 anos de adaptação da faiança às disponibilidades de matérias primas e de mão-de-obra e às condições tecnológicas definidas para aquela produção. Além das invulgares qualidades de persistência e inovação de que os seus proprietários e mestres deram provas, a cerâmica decorada com motivos regionais saída da fabrica de Lagoa popularizou o uso doméstico da faiança e o reconhecimento de paisagens, monumentos e figuras sanmicaelenses.
Reservei a tarde deste Domingo para visitar o Museu Carlos Machado, há muito fechado. Encontra-se agora parcialmente aberto, com dois núcleos, o de Santa Bárbara, com uma bela exposição temporária de Luísa Jacinto, comissariada por João Miguel Fernandes Jorge, e o de  arte sacra, na Igreja do Colégio dos Jesuítas. As duas exposições tem dignidade mas há que confessar que o facto de a maior parte da colecção continuar fora da vistas do público é ponto negro da política de património cultural dos governos de Carlos César.
Na improvisada loja do museu, chamou-me a atenção uma  fotobiografia de Natália Correia, pretexto bastante para uma visita de reconhecimento a Fajã de Baixo. O rasto de Natália na Fajã é decepcionante. A casa onde ela nasceu, hoje sede de uma organização social não tem visivelmente assinalado esse facto.

Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim 
eu sou do açores 
(relativamente 
naquilo que tenho 
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce 
quando somos nós 
que temos as dores.

16h30, altura de procurar resposta a um período prolongado de carência alimentar. Rumei à zona, para mim desconhecida, da ponta norte da cidade, designada no mapa por S. Roque. Desemboquei na praia de Rosto de Cão, um areal negro com alguma extensão, a meio do qual se situa a cervejaria Mariserra. O nome pareceu-me de muito bom augúrio. E não me enganei, desta vez. O proprietário deixou-me assentar arraiais na esplanada (deserta): eu e o meu inseparável Ipad, um fino, tremoços, um pequeno queijo amanteigado do Pico, pão e uma frigideira de lapas com limão.

Os primeiros vestígios da chuva surgiram pelas 18 horas. Lentamente a esplanada começou a receber novos visitantes. Natália foi a primeira.

Pusemos tanto azul nessa distância 
ancorada em incerta claridade 
e ficamos nas paredes do vento 
a escorrer para tudo o que ele invade. 

Pusemos tantas flores nas horas breves 
que secam folhas nas árvores dos dedos. 
E ficámos cingidos nas estátuas 
a morder-nos na carne dum segredo. 

Aumentámos a vida com palavras 
água a correr num fundo tão vazio. 
As vidas são histórias aumentadas. 
Há que ser rio. 

Logo a seguir, apareceu Nemésio.

Pedregulho na noite é o meu sonhar
(Alma cega tropeça no que inventa):
Quem fizesse verdade como o mar
Faz baías e as conchas que sustenta!

Ser o que é? Sabor a morte no ar.
Uma árvore de sangue é folha ou osso?
Estes jogos de fumo é o mais que posso
Na vida que me é dada ao interrogar.

Seremos noutro plano as sombras deste,
Como o Oriente é a réplica do Oeste
E a gota de água o alem do não chover.

Prende amor os desvios do contrário:
No estar aqui bem pode haver fadário,
E então no alem já não, já pode ser.

Antero não se fez esperar.

Junto do mar, que erguia gravemente
A trágica voz rouca, enquanto o vento
Passava como o voo dum pensamento
Que busca e hesita, inquieto e intermitente.

Junto ao mar sentei-me tristemente,
Olhando o céu pesado e nevoento,
E interroguei, cismando, esse lamento
Que saía da coisas, vagamente...

Que inquieto desejo vos tortura,
Seres elementares, força obscura?
Em volta de que ideia gravitais?

Mas na imensa extensão, onde se esconde
O inconsciente imortal, só me responde
Um bramido, um queixume, e nada mais...

Logo a seguir chegou Armando Cortes-Rodrigues

Sempre defronte
de mim
o mar azul, o mar imenso, o mar sem fim,
todo igual e azul até ao horizonte.

Neste dia delirante
de luz crua a jorrar, intensa, lá do alto,
uma vela distante
mancha de branco o seu azul-cobalto.

Um traço de espuma branca
junto à penedia
marca a linha da costa em enseada franca.

E a nota branca
das gaivotas em bando,
esvoaçando
à revelia,
e um ritmo novo de alegria,
de ruído e de graça.

Perto uma vela passa,
lenço branco a acenar...

Não ter asas também para poder voar
aonde me levasse a minha fantasia!
E ser gaivota e mergulhar
na água e bater asas,
alegre, todo o dia!

Poisar nos calhaus negros, que são brasas,
brasas negras a arder,
e ver aos pés a referver
aos borbotões de espuma.

Dar um grito e subir,
subir alto e distante,
já quando a terra se esfuma
e o mar aumenta, quanto mais avante.

Partir!

Partir para o delírio das alturas,
só, entre o céu e o mar,
longe do mundo e mais das criaturas.

Ah! Não ter asas e poder voar
de alma desvairada,
entontecer-me de espaço...

– Nota branca riscada
entre o azul do céu e o azul do mar.

Depois voltar
para ver
o sol morrer
num clarão de fogueira,
incendiando o céu, metalizando o mar...

E ver a noite abrir
o regaço
para deixar cair
uma a uma as estrelas.

Adormecer a vê-las...

Depois sonhar,
num delírio de cor, a noite inteira.

A chuva aumentou de intensidade. Na praia, a rapariga das calças vermelhas pôs-se de pé, e ligou o telemóvel.

João Miguel Fernandes Jorge entrou também na esplanada.

Que guarde o mar o silêncio acerca dos filhos do meu nome à
frialdade das vagas convertidos
e que me deixe na ilha a limitar o tempo longo
a sonhar fracassos sombrias vidas e obscuridades.

1 comentário:

Jacinta disse...

É nostálgica q. b. esta última crónica micaelense,desde as considerações iniciais até ao gelado poema, de Fernandes Jorge, que lhe serve e fecho.
Por outro lado, as presenças convocadas do outro Fernandes Jorge, de Natália e de Nemésio funcionam como contraponto.
Afinal, nem sempre as últimas crónicas serão as primeiras, i. é, as melhores, ou as mais amadas.