domingo, 4 de dezembro de 2011

À janela de Agustina Bessa Luis

O facto de Ema frequentar muito a varanda provocava bastantes percalços. Ao desfazer a curva da estrada, era forçoso levantar os olhos para a figura ali debruçada; e não havia motorista que ficasse indiferente. O choque da beleza ofuscava-o, isto sem querer exagerar. Perdiam por momentos o controlo e eram rudemente projectados contra a parede; outras vezes chocavam de frente com o carro que subia em sentido contrário e que não tinha maneira de se desviar, posto que o muro da propriedade de Ema era uma espécie de baluarte com quatro metros de altura. Também acontecia atropelarem gatos e cães, ou seguirem em ziguezague até à recta seguinte, causando o pânico sobretudo entre os frequentadores da taberna do Alexandre da estrada, que vinha à porta, com a camisola manchada de vinho e o ar fleumático dum Poirot de tasca e ramada.
As coisas foram piorando e chegaram aos ouvidos das autoridades. Uma manhã, pelas onze horas e pico, o Paulino Cardeano teve a visita do presidente da Câmara em pessoa. Recebeu-o no salão de baixo, com móveis de jacarandá e um piano, verdadeiro monumento de respeitabilidade e de sensatez algo vertiginosa que há nos salões de província, com dois espelhos dourados e cinzeiros em forma de folha lanceolada, com uma ninfa de águas como remate. Como é que uma tal deidade celebra as exéquias dum cigarro ou dum havano, não é fácil de explicar. Mas ela lá está, vestida de verde, com cabelos soltos e muito parecida às senhoras de Klimt. O presidente da Câmara, um homem doentio e de grandes olhos esbraseados, por causa da fadiga e do nervosismo constante, entrou imediatamente no assunto.
- A sua filha é um perigo para o trânsito nesta estrada.
- O quê? – disse Cardeano, estupefacto.
- Desculpe-me pôr as coisas assim, mas é um facto.
O Cardeano pensou que os presidentes da Câmara são sempre desprovidos de substância interior, de tutano, de calor humano. Conhecera um que se chamava Homero e nada mais fazia senão prometer o saneamento nos lugarejos mais atrasados e acabar com os pobres. Era acometido por uma estranha fixação, a de agradar ao povo. Era nele como uma inferioridade, como se uma melodia interior o prevenisse dum fim inesperado.
- Não sei o que a minha filha… - ia a começar a dizer o Cardeano, mas o presidente interrompeu-o.
- Ela não tem culpa, é evidente. Mas aquela varanda é muito capaz de não estar bem colocada. Seria bom mudá-la de sítio.
- Mudar a varanda? – disse Cardeano. A sua pequena cabeça calva cobriu-se dum tom arroxeado que alarmou o presidente.
- Não digo isso. Não sei se me faço entender.
- Não percebo absolutamente nada.
Quando Cardeano usava o advérbio “absolutamente”, fazia-o como os advogados, para ganhar tempo. Estava perto de entrar na questão que tinha a ver com Ema à varanda. Seria ela causa de alguma cena imprópria? Se assim fosse, ele teria sido informado, de tal modo a casa era percorrida por um zumbido de novidades e de notícias de que nada escapava. Mas Ema, acima de tudo, era uma criança e comportava-se como tal. Falava tão alto da varanda que se podia ouvir até à curva, entre Fontelas de Cima e Fontelas de Baixo. Não tinha segredos nem sabia nada das maravilhas da vida. À cautela, Cardeano pediu explicações mais detalhadas.
- Não é nada de mal – disse o presidente, tomando o seu ar afável das sessões da vereação. Cruzou a perna e pediu licença para fumar. A ninfa verde, que podia autorizá-lo ou não, não foi consultada. – O certo é que esta curva já está a ser encarada como a curva da morte. Todos se despistam aqui, e o motivo é essa maldita varanda.
Não aludiu a Ema, mas Cardeano compreendeu, de repente, onde estava o carácter inteligível da questão. Ema era a causadora. Ao que parecia, o povo tinha apresentado queixa, mães e pais e esposas também, quanto à presença de Ema na varanda. Ela causava como que uma rápida resolução de jogar o carro contra o muro, gerando um procedimento irreversível.

Agustina Bessa-Luís, Vale Abraão, 1991. Lisboa, Guimarães Editores.

1 comentário:

Isabel X disse...

Muito interessante este excerto de Agustina sobre varandas nefastas. Sobre o efeito devastador da beleza. Sobre os equívocos que provoca.
O saltitar de assunto em assunto, a propósito do tema central, sem nunca o deixar: cinzeiros,senhoras pintadas por Klimt, presidentes de câmara e as suas idiossincrasias...

- Isabel X -

- Isabel X -