segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Memórias: o Liceu Padre António Vieira (introdução)

PAV – 25
(Notas para uma intervenção - que não chegou acontecer - destinada às comemorações do 25 de Abril de 1999 no antigo Liceu Padre António Vieira)

Alinhei umas palavras no papel para me assegurar contra o esquecimento e contra o eventual deslize da emoção.
Gostaria em primeiro lugar de agradecer aos promotores deste gesto de reconhecimento por um lugar onde todos crescemos e ao qual nos ligam sentimentos fortes e lembranças preciosas.
Devo tomar precauções contra a tentação de falar de mim e por isso arrumarei esse “pecado” dizendo o seguinte: entrei para o Padre António Vieira no ano lectivo de 1971-1972. Tinha 22 anos. Saí em 1977. Foi um período crucial para Portugal, foi um período decisivo da minha vida.
Como era professor, tive um contacto privilegiado com alunos, com centenas de jovens, entre os 14/15 anos e os 17/18, para desprazer de alguns, espero que não muitos, mas sempre procurando tecer com eles e com as disciplinas que tive a “desgraça” de leccionar, uma cumplicidade feita de atenção à vida e amor à criação livre e ao espírito crítico.
Desses anos intensíssimos, há imagens que se recortam em alto contraste e que peço licença para evocar nesta jornada de afectos:
Chamou-me a atenção, quando aqui cheguei, a qualidade da arquitectura. Soube mais tarde que o gabinete responsável pelo projecto do Padre António Vieira fora o dos autores do projecto da Fundação Calouste Gulbenkian, e efectivamente há na composição das fachadas elementos gramaticais comuns. Ainda hoje gosto desta entrada, com a reserva e abertura sabiamente doseadas, a arrumação interna, embora evidentemente os conceitos actuais de segurança e funcionalidade sejam diferentes.
O segundo aspecto a impressionar-me foi a organização descentralizada. A vida da escola decorria entre uma liderança não carismática, diríamos até fraca, e uma orgânica baseada nos directores de turma e de ciclo. As direcções de ciclo (professoras Lurdes Neto e Florinda) asseguravam uma coordenação pedagógica baseada numa grande dedicação e empenho pessoais, duma eficácia que raramente me foi dado observar em quase três dezenas de actividade lectiva.
O Liceu era de criação recente e essa aura de instituição jovem era partilhada por professores e estudantes. As relações professor-aluno eram menos formais que noutros locais e, embora não existissem figuras intelectuais de projecção nacional (como no Camões ou no Maria Amália ou no Passos Manuel), o ambiente na sala de aula e em geral na escola era de abertura, de curiosidade e apreço pela inovação. Assim se explica que eu tenha, sem qualquer dificuldade ou objecção, criado uma espécie de grupo de estudos sobre o século XIX, inteiramente voluntário, no qual manifestei, perante alunos meus e de outros colegas, algumas das minhas próprias preocupações sobre a formação social portuguesa, numa altura em que preparava a minha tese de licenciatura.
Esclareço que quando entrei para o PAV era possuidor apenas do bacharelato em História (de facto só em 1974 me licenciei, tirando até então partido da existência de cadeiras em falta para provocar o adiamento da incorporação no serviço militar obrigatório).
Recordo agora momentos e pessoas especialmente significativas do PAV que hoje, 25 anos depois do 25 de Abril, aqui celebramos.
Em primeiro lugar, há os amigos professores falecidos, todos aliás em circunstâncias trágicas, o José Magno, o Padre Alberto Neto, e o Padre Maximino de Sousa, o primeiro num desastre de automóvel e os dois últimos assassinados. Cada um no seu registo próprio, foram figuras inspiradoras: na sua inquietude o padre Max, na sua transbordante energia e coerência o padre Alberto, na sua exigência intelectual o José Magno.
Em segundo lugar, há os momentos que envolveram a comunidade escolar, não deixando ninguém indiferente, com destaque para a luta dos estudantes da alínea de Económicas contra o sistema de aprendizagem e avaliação decorrente da sua inclusão no regime de estágios. Houve uma ruptura no sistema, entre estudantes e autoridade central do Ministério, e a escola reagiu como um bloco procurando por diversos meios proteger e defender os seus. Isto em 1972, se não erro.
O 25 de Abril teve no PAV um impacte formidável, em larga medida porque o liceu tinha experimentado solidariedades activas antes de 1974 e no seu corpo de alunos contavam-se alguns dos jovens mais politizados do ensino secundário português da altura. Foi um período de alguma turbulência, sobretudo no plano da gestão, muito participada e, por isso, envolvendo muitos desafios e riscos. Foi no PAV que arrancou o processo de reposição da coeducação no ensino secundário liceal.
O Carvalho Neves, em cujos ombros assentou, para o melhor e o pior, a responsabilidade de tecer os novos equilíbrios surgidos dos impulsos contraditórios entre o Ministério, a comunidade escolar, e a sociedade, poderá falar desses tempos de aprendizagem da democracia e da controvérsia. Como todos os tempos de mudança brusca, houve problemas mal respondidos e houve problemas que soubemos transformar em oportunidades.
A gestão nunca me tentou, estive na altura envolvido na luta sindical, mas acompanhei de perto algumas fases da complexa procura de um novo modelo de direcção. Estive sim directamente envolvido na revisão dos programas, designadamente no de Vida Política, que substituíu a antiga e ingrata OPAN que tantas horas de aula me consumira.
O PAV foi, nos tempos conturbados do PREC, uma referência, sobretudo porque o basismo dominante, e a cultura autonómica se desenvolveram mais do que noutros locais e resistiram muito tempo à inversão de tendência e ao "regresso à normalidade". Isso aliás também lhe trouxe um conjunto de provocações muito desgastante.
Uma palavra final sobre o que aprendi no PAV e só no PAV aprendi:
- que é fundamental desenvolver numa escola uma cultura de identidade, baseada em factores tradicionais como o prestígio do seu corpo docente, mas também na participação e na capacidade de coordenação pedagógica;
- que o quotidiano escolar tem que ser enriquecido com a disponibilidade para gerar projectos abertos de pesquisa e de debate, inter e intradisciplinares; há que reorientar a vocação da escola para os valores e não apenas para os comportamentos;
- que o tempo de estudante é essencial para o nosso futuro como pessoas e como cidadãos e por isso é indispensável que o espaço escolar permita ao jovem ser mais criativo e mais participativo, mais livre.

3 comentários:

Anónimo disse...

Brilhante memória e análise...

Um abraço emocionado de um ex aluno, em 74 com 14/15 anos.

Hoje um cidadão activo em defesa da cidadania e das manhãs claras de Abril.

Francisco Colaço

Professor ÁLVARO MONTEIRO, PhD disse...

Olá, fui aluno do PAV entre 1972 e 1977. recordo Professores como Fisiquinhas, a Profª Loira de português (na época uma Miss) e Colegas como Clotilde, Susana, Isaura, Guedes, Arnaldo,...estes já no final. Nesse tempo meu pseudónimo era DOMECQ.
Ideal será reencontrar Colegas e Hoje tb Colegas Professores.
Abraços AM - www.alvaromonteiro.com.br

Anónimo disse...

Entrei no Padre António Vieira em 67 ainda para o 1º ano. Não havia ainda ciclo preparatório. Saí em 74.