Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro País esta regão seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhe chega e os encanta. É sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas descobrindo motivos imprevistos. É- o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos que só se arriscam num palmo de água - porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miriades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a ria também sítio para os que amam a luz acima de todas as coisas.
Guia de Portugal, vol. 3. Beira. Beira Litoral. 3ª edição. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1993 (1ª ed. 1940). p. 505.
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
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11 comentários:
Bonito o texto que escolheu, belas as fotos pela serenidade que transmitem.
E se em vez de olhar para trás: "o que eu andei..." olhasse para a frente. "o que me falta andar..."
Já uma vez me sugeriu que diversificasse as janelas e eu lá fui, diligentemente, em busca de janelas...literárias. Agora desafia-me a mudar a orientação do blog. Acho que não sou capaz de tantas alterações. Homem só resolve um problema de cada vez e a mim a inconstância perturba-me muito. De qulquer forma, o meu muito obrigado, Isabel, pela sua atenção e pelos comentários sempre a propósito que muito enriquecem este espaço de expressão de reflexões e afectos.
Passada a ponte da Murtosa, a estrada desdobra-se em três, ou melhor, em quatro. Hão-de fundir-se, 30km mais tarde, no pontão rochoso do molhe norte.
Rodamos sobre a pista asfaltada de negro, hoje aplainada, mas durante muitos anos tão colada ao fundo aquoso que era de ondas largas e cavadas, embalando o carro e adormentando os passageiros.
À esquerda, começa a correr a fita líquida do azul-cerúleo, a cada dez metros alargada até se converter, junto à Torreira, no apelo irresistível do mar interior a que chamam a Ria, útero de onde nasciam sargaços e robalos, salinas e milheirais.
À direita, a massa verde-escuro da antiga mata nacional, por si rompendo e subindo ao céu, abre ou limita a amplitude da estrada.
Para lá dela, mais presente do que essa mata que a esconde, estará para sempre e chega até nós no vento e na maresia a vastidão horizontal do Atlântico. Em dias quentes de Verão é quase branco da luz que, ao pôr-do-sol, o pode incendiar.
Chegado à praia, olhando esse mar tão largo e solitário, sem istmos nem baías, esse mar sério e indomado, o menino diz: "Afinal, parece que o mar é que tem saudades da Ria, não é?".
Em tam ria.
Esta descrição da ria de Aveiro pareceu-me de imediato demasiado idílica para ser verdadeira. Quase do género "o amor e uma cabana". Falta-lhe a dialécica das gentes nas suas fainas, nem sempre fáceis, muitas vezes arriscadas para quem busca no mar o seu pão. Mesmo em vilegiatura há sempre oportunidades de estar atento ao enxame das vidas, nelas participando activamente e não apenas na ruminação contemplativa, tão ao jeito do excerto.
Afinal, o responsável pela publicação deste volume III do Guia, que saíu em 1944, era Santana Dionísio, Raul Proença partira em 1941.
Lembram-se da "filosofia portuguesa" e dos seus luminares?
Afinal, a partir deste volume o Guia de Portugal terá sofrido alguma inflexão ideológica para a "direita"?
Não sei e gostava de saber.
Poderá imaginar como fico feliz por, de forma modesta, ter contribuído para que fossem aqui publicados pedaços de prosa tão extraordinários como os que surgem com a etiqueta “Janelas Literárias”? Nunca me tinha debruçado a algumas dessas janelas, outras tinham sido apenas atravessadas por um olhar breve, no seguimento da leitura, embora haja, também, daquelas em que me debruçara e permanecera no deleite das palavras.
Pesa-me terem-lhe faltado os meus comentários a dizer quanto gostava das suas escolhas. Não estive à altura da sua gentileza. Creia que para além de me deleitarem, alguns desses textos aumentaram o meu conhecimento.
E depois do que me diz, envergonhando-me até ao acrescentar “diligentemente” julga que a sua exagerada modéstia me contém?
Posso imaginar, pelas notícias, que terá muitíssimo com que se preocupar, muitos problemas graves (ou agudos- que sei eu?) para resolver e que o momento não é propício à minha insistência, mas alguém perde por esperar?
Hei de voltar a lembrá-lo. Uma perspetiva mais pessoal não deixará de encantar os seus leitores.
Jacinta, a quem é atribuído este texto magnifico?
Isabel, agradeço todas as suas palavras. Mas creia que nunca dou por mal empregue o meu tempo naquilo que posso fazer por decisão própria, estimulado ou não por desafios lançados por outrem. O mesmo não poderei dizer daquilo que tenho de fazer só porque tem de ser feito.
Vasco, o texto poético fui eu quem o seleccionou. Há outras passagens, no Guia, menos líricas e mais realistas. O texto sobre a ria no Guia de Portugal integra um resumo feito por Agostinho da Silva de um longo texto escrito por Raul Proença sobre a região de Aveiro e publicado na Seara Nova.
Jacinta, a cronista contemporânea da Ria. Ao fim dos 30 km que tão bem conhece, não fica S. Jacinto? Curiosa coincidência...
O texto que começa "Passada a ponte da Murtosa(...) é atribuível a Jacinta S. C., entidade nascida num solstício de Verão em que passou a acreditar que ainda pode ser feliz, por ex., na Torreira.
Porém, dá-se mal com o equinócio do Outono, altura em que tem tendência a subsumir-se por entre as folhas caducas e o moliço das águas agora cor de cinza.
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