segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Um resíduo de beleza que nunca mais se extingue

Ninguém aqui vem que não fique seduzido, e noutro País esta regão seria um lugar de vilegiatura privilegiado. É sítio para contemplativos e poetas: qualquer fio de água lhe chega e os encanta. É sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar sobre quatro tábuas descobrindo motivos imprevistos. É- o para os que se apaixonam pelo mar profundo, e para os medrosos que só se arriscam num palmo de água - porque a ria é lago e mar ao mesmo tempo. Com meios muito simples, um saleiro e uma barraca, tem-se uma casa para todo o Verão. Pesca-se. Sonha-se. Toma-se banho. E esquece-se a vida prática e mesquinha. Dorme-se ao largo, deitando-se a fateixa ou abica-se ao areal: um fogaréu, uma vara, a caldeirada... Começam a luzir no céu e na ria ao mesmo tempo miriades de estrelas. Vida livre dalguns dias, de que fica um resíduo de beleza que nunca mais se extingue. É a ria também sítio para os que amam a luz acima de todas as coisas.

Guia de Portugal, vol. 3. Beira. Beira Litoral. 3ª edição. Lisboa, F. C. Gulbenkian, 1993 (1ª ed. 1940). p. 505.




11 comentários:

Isabel Soares disse...

Bonito o texto que escolheu, belas as fotos pela serenidade que transmitem.

E se em vez de olhar para trás: "o que eu andei..." olhasse para a frente. "o que me falta andar..."

João B. Serra disse...

Já uma vez me sugeriu que diversificasse as janelas e eu lá fui, diligentemente, em busca de janelas...literárias. Agora desafia-me a mudar a orientação do blog. Acho que não sou capaz de tantas alterações. Homem só resolve um problema de cada vez e a mim a inconstância perturba-me muito. De qulquer forma, o meu muito obrigado, Isabel, pela sua atenção e pelos comentários sempre a propósito que muito enriquecem este espaço de expressão de reflexões e afectos.

Jacinta disse...

Passada a ponte da Murtosa, a estrada desdobra-se em três, ou melhor, em quatro. Hão-de fundir-se, 30km mais tarde, no pontão rochoso do molhe norte.
Rodamos sobre a pista asfaltada de negro, hoje aplainada, mas durante muitos anos tão colada ao fundo aquoso que era de ondas largas e cavadas, embalando o carro e adormentando os passageiros.
À esquerda, começa a correr a fita líquida do azul-cerúleo, a cada dez metros alargada até se converter, junto à Torreira, no apelo irresistível do mar interior a que chamam a Ria, útero de onde nasciam sargaços e robalos, salinas e milheirais.
À direita, a massa verde-escuro da antiga mata nacional, por si rompendo e subindo ao céu, abre ou limita a amplitude da estrada.
Para lá dela, mais presente do que essa mata que a esconde, estará para sempre e chega até nós no vento e na maresia a vastidão horizontal do Atlântico. Em dias quentes de Verão é quase branco da luz que, ao pôr-do-sol, o pode incendiar.
Chegado à praia, olhando esse mar tão largo e solitário, sem istmos nem baías, esse mar sério e indomado, o menino diz: "Afinal, parece que o mar é que tem saudades da Ria, não é?".

Cláudia da Silva Tomazi disse...

Em tam ria.

Vasco Tomás disse...

Esta descrição da ria de Aveiro pareceu-me de imediato demasiado idílica para ser verdadeira. Quase do género "o amor e uma cabana". Falta-lhe a dialécica das gentes nas suas fainas, nem sempre fáceis, muitas vezes arriscadas para quem busca no mar o seu pão. Mesmo em vilegiatura há sempre oportunidades de estar atento ao enxame das vidas, nelas participando activamente e não apenas na ruminação contemplativa, tão ao jeito do excerto.
Afinal, o responsável pela publicação deste volume III do Guia, que saíu em 1944, era Santana Dionísio, Raul Proença partira em 1941.
Lembram-se da "filosofia portuguesa" e dos seus luminares?
Afinal, a partir deste volume o Guia de Portugal terá sofrido alguma inflexão ideológica para a "direita"?
Não sei e gostava de saber.

Isabel Soares disse...

Poderá imaginar como fico feliz por, de forma modesta, ter contribuído para que fossem aqui publicados pedaços de prosa tão extraordinários como os que surgem com a etiqueta “Janelas Literárias”? Nunca me tinha debruçado a algumas dessas janelas, outras tinham sido apenas atravessadas por um olhar breve, no seguimento da leitura, embora haja, também, daquelas em que me debruçara e permanecera no deleite das palavras.
Pesa-me terem-lhe faltado os meus comentários a dizer quanto gostava das suas escolhas. Não estive à altura da sua gentileza. Creia que para além de me deleitarem, alguns desses textos aumentaram o meu conhecimento.
E depois do que me diz, envergonhando-me até ao acrescentar “diligentemente” julga que a sua exagerada modéstia me contém?
Posso imaginar, pelas notícias, que terá muitíssimo com que se preocupar, muitos problemas graves (ou agudos- que sei eu?) para resolver e que o momento não é propício à minha insistência, mas alguém perde por esperar?
Hei de voltar a lembrá-lo. Uma perspetiva mais pessoal não deixará de encantar os seus leitores.

João B. Serra disse...

Jacinta, a quem é atribuído este texto magnifico?

João B. Serra disse...

Isabel, agradeço todas as suas palavras. Mas creia que nunca dou por mal empregue o meu tempo naquilo que posso fazer por decisão própria, estimulado ou não por desafios lançados por outrem. O mesmo não poderei dizer daquilo que tenho de fazer só porque tem de ser feito.

João B. Serra disse...

Vasco, o texto poético fui eu quem o seleccionou. Há outras passagens, no Guia, menos líricas e mais realistas. O texto sobre a ria no Guia de Portugal integra um resumo feito por Agostinho da Silva de um longo texto escrito por Raul Proença sobre a região de Aveiro e publicado na Seara Nova.

João B. Serra disse...

Jacinta, a cronista contemporânea da Ria. Ao fim dos 30 km que tão bem conhece, não fica S. Jacinto? Curiosa coincidência...

Jacinta disse...

O texto que começa "Passada a ponte da Murtosa(...) é atribuível a Jacinta S. C., entidade nascida num solstício de Verão em que passou a acreditar que ainda pode ser feliz, por ex., na Torreira.
Porém, dá-se mal com o equinócio do Outono, altura em que tem tendência a subsumir-se por entre as folhas caducas e o moliço das águas agora cor de cinza.