(…) – Ó deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os deuses durarem; e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem (…). O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, ó deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu amo e apeteço a sua companhia congénere! Considera como é penoso que, a esta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis enquanto tu, ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a ambrósia divina! Em oito (8) anos, ó deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria, nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima, nem bateste o pé com irada impaciência, nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio… E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo esfregue o teu corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade; e, durante o longo tempo que contigo dormi nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Ó deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! Considera ainda que, como deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Ó deusa, tu és impecável; e, quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - Foi culpa tua, mulher! – erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope, que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso me ame de um amor que constantemente se alimenta desses modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários.
(…) Caminhando dos carvalhos às tecas, a deusa marcou ao atento Ulisses os troncos secos, robustecidos por sóis inumeráveis, que flutuariam, com ligeireza mais segura, sobre as águas traidoras.
(…) Enfim, ao quarto dia de manhã, Ulisses findou de esquadrar o leme, que reforçou com grades de amieiro para melhor aparar o embate das ondas. (…) Então a deusa, ao lado do herói, levemente suspirou e murmurou num sorriso alado:
- Ó magnânimo Ulisses, tu certamente partes. (…) Mas diz! Se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, ó homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e beleza imortal? (…)
– Ó deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existisse para me levar nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos deuses! Porque, na verdade, ó deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. Considera, ó deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras, nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas estas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, ó deusa, que admirei e respirei na primeira manhã em que me mostraste estes prados perpétuos – e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna. Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacavelmente, o seu voo harmonioso e branco que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da gruta para não escutar o murmúrio sempre lânguido destes arroios sempre transparentes! Considera, ó deusa, que na tua ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça de um bicho morto e coberto de moscas zumbidoiras. Ó deusa, há oito anos, oito terríveis anos, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento… Ó deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem de uma ponte; os braços suplicantes de uma mãe que chora; um coxo sobre a sua muleta, mendigando à porta das vilas… Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura… Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo pelo que se deforma e se suja, e se espedaça, e se corrompe… Ó deusa imortal, eu morro com saudades da morte!
Imóvel, com as mãos imóveis no regaço, enrodilhadas nas pontas do véu amarelo, a deusa escutara com um sorriso serenamente divino (…).
Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.
2 comentários:
Não será este o discurso da mais pura e dura das ingratidões?
Ou é, afinal, um dos mais belos hinos à insatisfação humana?
Como é possível a alguém que não renuncia à vida prescindir da aceitação da morte?
Jamais saberia avaliar o dorido gozo dos "contentamentos descontentes", no dizer, por nós plurificado, do soneto de Camões.
Só a insatisfação faz crescer.
Crescer o desejo, a vontade, a consciência e o ser, a ternura e os projectos.
O querer ser mais e, sobretudo, ser melhor. Junto dos outros, do outro, de nós. Ou vice-versa.
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