(…) “No entanto, já pela colina as ninfas, servas da deusa, desciam, trazendo à cabeça e amparando com o braço redondo, os jarros de vinho, os sacos de couro, que a intendenta venerável mandara para abastecer a jangada. Silenciosamente, o herói lançou uma tábua desde a areia até ao bordo dos altos toros. E, enquanto sobre ela as ninfas passavam, ligeiras, com as manilhas de ouro tilintando nos pés luzidios, Ulisses, atento, contando os sacos e os odres, gozava no seu nobre coração a abundância generosa. Mas, amarrados com cordas às cavilhas aqueles fardos excelentes, todas as ninfas, lentamente, se sentaram sobre o areal em torno da deusa, para contemplarem a despedida, o embarque, as manobras do herói sobre o dorso das águas… Então uma cólera lampejou nos largos olhos de Ulisses. E, diante de Calipso, cruzando furiosamente os valentes braços:
- Ó deusa, pensas na verdade que nada falta para que eu largue a vela e navegue? Onde estão os ricos presentes que me deves? Oito anos, oito duros anos, fui o hóspede magnífico da tua ilha, da tua gruta, do teu leito… Sempre os deuses imortais determinaram que aos hóspedes, no momento amigo da partida, se ofertem consideráveis presentes! Onde estão elas, ó deusa, essas riquezas abundantes que me deves por costume da Terra e lei do Céu?
(…) – Ó Ulisses, tu és claramente o mais interesseiro dos homens! E também o mais desconfiado, pois que supões que uma deusa negaria os presentes devidos àquele que amou… Sossega, ó subtil herói…Os ricos presentes não tardam, largos e brilhantes.
E, certamente, pela colina suave, outras ninfas desciam, ligeiras, com os véus a ondular, trazendo nos braços alfaias lustrosas, que ao sol rutilavam! O magnânimo Ulisses estendeu as mãos, os olhos devoradores… E enquanto elas passavam sobre a tábua rangente, o herói astuto contava, avaliava no seu nobre espírito os escabelos de marfim, os rolos de telas bordadas, os cântaros de bronze lavrados, os escudos cravejados de pedras… Tão rico e belo era o vaso de ouro que a derradeira ninfa sustentava no ombro, que Ulisses deteve a ninfa, arrebatou o vaso, sopesou, mirou, e gritou, com soberbo riso estridente:
- Na verdade, este ouro é bom!
Depois (…), cortou a corda que prendia a jangada ao tronco de um roble e saltou para o alto bordo que a espuma envolvia. Mas então recordou que nem beijara a generosa e ilustre Calipso! Rápido, arremessando o manto, pulou através da espuma, correu pela areia e pousou um beijo sereno na fronte aureolada da deusa. Ela segurou de leve o seu ombro robusto:
- Quantos males te esperam, ó desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos…
Ulisses recuou, com um brado magnífico:
- Ó deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!
E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias – para a delícia das coisas imperfeitas!”
Eça de Queirós, "A Perfeição". Contos. Lisboa. Bertrand, 2008.
1 comentário:
Partamos, pois, humanos que somos, para a delícia das coisas não perfeitas.
Sem, contudo, perdermos de vista o horizonte da perfeição das coisas.
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