quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Crónicas micaelenses - 4


A primeira etapa da quarta jornada micaelense tinha como alvo o Mercado  da Graça, uma construção de meados do século XIX. O ambiente dos mercados ajuda a caracterizar uma certa feição das cidades. Hoje, como no passado, ali se encontram os bens que de alguma forma caracterizam a produção agrícola e as pescas de uma região e se definem os preços de referencia que o mundo urbano está disponível para pagar. Mas além disso, o mercado foi um ponto de encontro fundamental das cidades, um centro receptor e difusor de informação sem paralelo. Parte destas funções perdeu-as com a integração e globalização e sobretudo com as profundas transformações tanto do mundo rural como dos hábitos de consumo urbanos.
Deambulei entre os produtos da terra (todos assinalados com a designação origem regional) e do mar, admirei os peixes e cheirei deliciado os ananases, e quase me perdi na loja dos queijos, compotas, enlatados, chá, vinhos e bolos do arquipélago.
Em sucessivas idas e vindas ao carro para despejar os sacos de compras consumi o resto da manhã. Um dos vendedores - de batata doce - advertira-me de que entrara tarde no mercado. De facto, pelas 12h30 as instalações encerram.




A meteorologia parecia hesitar entre voltar ao regime de neblinas e chuvas dos dias anteriores ou proporcionar aos visitantes a primeira aberta soalheira na zona montanhosa. Pareceu avisado dar-lhe mais algum tempo de decisão e procurar um local para um almoço ligeiro. Pairava em memória longínqua o nome e o som de umas lapas açorianas crepitando na chapa da grelha, o que sugeria a procura de uma marisqueira. A consulta via IPad apontava uma hipótese - a Casa Marisca - suficientemente longe do centro da cidade para justificar um passeio prolongado. Escolha acertadíssima. Serviço despretensioso e eficaz. Qualidade excelente de toda a comida, preços razoáveis, a contrastar com a tendência geral inflacionária. As lapas estavam saborosas, o queijo de S. Jorge na cura apropriada, o bife suculento e no ponto, o vinho branco agradável.
O regresso pela marginal permitiu adivinhar que a neblina se retirara das fortalezas que ocupara nos dias anteriores. Aproveitando a brecha tomei a estrada para Sete Cidades. Até encontrar a grande cratera do vulcão, agora revestida a verde, com as duas lagoas no fundo, a estrada foi galgando os flancos da massa erguida pela erupção da terra há cerca de 20000 anos. Num dos pontos de observação da subida, avista-se quase toda a ilha, que se estreita por alturas de Ribeira Grande. Noutro o mar,  para norte e noroeste.



Peço então de novo ajuda a Raul Brandão.
"Na minha frente entreabre-se um abismo que nos atira para fora da vida, para regiões inesperadas de sonho. A convulsão, a brutalidade e o fogo levantaram até ao céu grandes paredes vulcânicas, dispondo no fundo do caos alguns campinhos meigos e dois lagos, um inteiramente verde e outro inteiramente azul, separados por um fio de terra e quietos, adormecidos, cismáticos. As forças desencadeadas chegaram a este resultado: um pouco de azul, um pouco de verde, ternura e idílio... Paredes cortadas a pique, carregadas de árvores, que se despenham de cima até abaixo, acabam na água ou em pequenas chãs de milho, que a luz das ilhas envolve duma frialdade casta e imóvel...
Um ah de assombro, um sentimento novo, um vago sentimento de surpresa... Pela primeira vez na vida não sei descrever o que vejo e o que sinto. Conheço os lagos voluptuosos da Itália e os lagos adormecidos da Escócia: o lago das Sete Cidades não se parece com nenhum que tenha visto. Existe ou sonhei esta água parada , esta grande cova selvática empoada de roxo, com aquela serenidade a ferros lá no fundo? esta beleza estranha que nos contempla ao mesmo passo que a contemplamos?
O carácter da paisagem é delicado e oculto. Embora a gente veja o campanário e as casas minúsculas no fundo da enorme cratera duvida, e chega a supor que a vara dum mágico fez parar o tempo, e aquilo se conserva encantado entre montes desmedidos e brutos que o guardam prisioneiro. O tempo passa, os homens passam; só ali tudo está suspenso, na atitude fixa no momento do prodígio.  Na solidão mágica não se ouve  cantar um pássaro, a água não bole, as flores não bolem. Tudo se mostra na amplidão da cratera aberta para o céu e num grande silencio estarrecido. Tão pouca tinta! Um quadro feito de emoção; um quadro em que o verde não chega a ser verde, em que o azul é névoa, e um sopro o pó roxo suspenso no ar, ouro hálito da paisagem arfando. Três riscos muito leves para fixar o encanto, como se fosse possível só com sentimento e quase com nada de cor, fazer uma obra-prima. Reparo que há efectivamente uns carreiros perdidos por entre os montes para descer lá abaixo. Mas eu não me atrevo! tenho medo de que ao aproximar-me a visão se desvaneça no ar!..."


Sem receio meti-me ao caminho para Sete Cidades. A estrada, ao contrário da que presumivelmente Brandão tinha ao dispor, é moderna e segura. Não consegui observar detidamente a povoação que se encontrava em estado de sítio, devido a obras na zona mais próxima da linha de água, mas a paisagem natural aqui fica registada.






Tinha reservado o fim da tarde para tomar uma bebida com C.R.,  meu antigo aluno na Faculdade de Letras de Lisboa, amigo com quem partilhei alguns temas de investigação. Graças à sua predisposição conversadora, três anos de distancia foram rapidamente ultrapassados dando azo a uma soma inesgotável de informações. Foi difícil abrir uma brecha nesta torrente, para introduzir o jantar marcado para o Borda d' Água, em Lagoa. Deste direi laconicamente que já esqueci este desastre. Não tenciono dar-lhe uma nova oportunidade.

Uma operação stop aguardava-me à saída do restaurante. A agente foi cordata e depois de me mandar soprar no balão autorizou-me a prosseguir. No largo da matriz, Lagoa celebrava a noite com música, cerveja e farturas.
Uma felina preta espreitava-me por detrás da tela mosquiteira.


2 comentários:

S. J. disse...

É quase sempre assim: os últimos serão os primeiros, ou seja, a última das crónicas será a mais bela.
Graças a Raul Brandão, sem dúvida; mas graças, também, à prosa escandida do cronista e à serena e funda e ainda forte beleza das imagens colhidas.
Parabéns!

Anónimo disse...

Eis o ponto mágico(fotograma chave), que revela todo o encanto da ilha"Num dos pontos de observação da subida, avista-se quase toda a ilha, que se estreita por alturas de Ribeira Grande. Noutro o mar, para norte e noroeste......".Fascinante...nem sempre acessivel, nem sempre disponível.....
NB