sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (2)

As férias desse Natal de 1970 dediquei-as pois ao estudo do programa de Filosofia do 7º ano do liceu. Recuperei o compêndio pelo qual estudara, o famoso “Bonifácio” de má memória – ao qual, contra minha vontade, o meu nome andou sempre associado – comprei o do “Saraiva” e revolvi velhos apontamentos anti-pedagógicamente ditados pela Dr.ª Deolinda Ribeiro. Mas a salvação veio de um excelente manual utilizado no Liceu Francês e que descobri numa das livrarias do Campo Grande. Adquiri também as antologias de textos de Filosofia e Psicologia organizadas pelos Professores Joel Serrão e Borges de Macedo. Com esta bibliografia, devidamente lida e passada a esquemas e notas, senti-me enfim em condições de enfrentar a tarefa de preparar jovens de 17 e 18 anos para o exame de filosofia, convicto de que estaria mais habilitado para esse efeito do que os professores que me tinham cabido em sorte 5 anos antes...
Os meus pais quiseram acompanhar-me, no regresso a Castelo Branco A  minha mãe, em particular, fazia questão de verificar as condições que eu deveria ajustar para uma estadia prolongada. Feitas as contas ao montante total das viagens, concluíram pela vantagem de alugar um carro de praça. Fecharam o negócio com um motorista conhecido e lá partimos do Carvalhal Benfeito, Caldas da Rainha, num dos primeiros dias de um Janeiro escuro e chuvoso. A partir de Abrantes, à chuva juntou-se o frio e, mais à frente, os primeiros flocos de neve. Em Vila Velha de Rodão, a altura de neve na estrada era já tão significativa que o nosso condutor se declarou incapaz de prosseguir. “Paremos enquanto é tempo; mais à frente podemos ficar empanados e ter de dormir no carro” – disse.
Em Vila Velha de Ródão, soubemos que os comboios para o nosso destino ainda funcionavam. Foi assim que, já de noite, chegámos a Castelo Branco. Cansados, ansiosos, cheios de frio, carregando malas de livros e de roupa. Dirigimo-nos à Pensão Império, a unidade hoteleira com a qual pré-contratara um aluguer de quarto com refeições e tratamento de roupa por 1500$00.
O meu vencimento ia ser de cerca de 4700$00 por mês. Os professores provisórios eram então contratados de Outubro a Junho, ou seja por 9 meses (no meu caso de meados de Dezembro a Junho). Os subsídios de férias e natal não constavam dos direitos dos funcionários públicos. Em contrapartida, os seus salários não pagavam impostos.
A minha mãe “apovou” as instalações. Na Império, eu dispunha de um quarto com janela e uma mesa de trabalho e um pequeno lavatório (a casa de banho, com duche e sanitários, encontrava-se no corredor, servindo 5 quartos). A comida era abundante e de boa qualidade. Como o meu contrato era ao mês e eu saía algumas vezes ao fim de semana, era compensado podendo convidar colegas a almoçar ou jantar comigo sem qualquer pagamento.
Depressa estabeleci uma rotina em Castelo Branco. As manhãs de Segunda a Sábado eram ocupadas com aulas. Depois de almoço ficava na pensão a trabalhar. Ao fim da tarde saía para praticar algum desporto. Fiz-me sócio da Assembleia, um clube das elites locais onde se podia jogar ténis de mesa. Na maior das vezes era com alunos que jogava. Em determinada altura fui convidado para me filiar no Benfica e Castelo Branco e por algum tempo integrei a sua equipa de competição. Depois de jantar, voltava a sair para tomar um café com colegas. O Turismo (situado no Hotel com o mesmo nome) e o Avis eram os meus cafés preferidos. Os colegas que aí vinham conversar eram poucos: o já aludido Joaquim Artur Marques de Carvalho, um professor de Educação Física, conhecido por "El Bigodón", um professor de Ciências cujo nome não recordo, o maestro Carlos Gama, professor de Canto Coral. Do Joaquim Artur sentia-me mais próximo, tanto em razão da formação em História, como de outros interesses intelectuais. Acontecia que terminado o café, regressando os colegas às suas casas, era  procurado por alunos que me vinham acompanhar à Pensão aproveitando para conversar sobre os mais variados assuntos. De facto eu sentia-me muitas vezes mais próximo daqueles jovens do que dos meus colegas e embora julgasse saber que a camaradagem entre professores e alunos era motivo de apreensão por parte de alguns professores do liceu, nunca fui admoestado ou advertido pessoalmente pelo facto. Também é certo que nunca senti em qualquer das duas turmas de 7 º ano – uma masculina outra feminina – qualquer ameaça ao clima de trabalho e aprendizagem motivado por essa cumplicidade conquistada fora da escola. Nos fins de semana em que fiquei em Castelo Branco, aceitei convites para participar em piqueniques e outras realizações de convívio organizados pelos estudantes. Com as raparigas o relacionamento foi bem menos próximo e intenso. Mesmo assim, recordo-me que por vezes apareciam no café Turismo ou na Pensão Império para me colocaram dúvidas ou me pedirem opinião sobre leituras.
Apesar do conservadorismo dominante no Liceu, só uma vez senti a pressão institucional dele resultante. Tratou-se de uma ocasião determinada: uma visita do Presidente da República à cidade. Aos professores foi distribuída uma carta circular assinada pelo Reitor convidando-os para uma sessão de cumprimentos que iria ter lugar na ocasião – um Domingo – no Governo Civil. Pedia-se que confirmassem a presença. Dois dias antes da data prevista, o Reitor deve ter verificado que o número de professores disponíveis para cumprimentar o Almirante era decepcionante. Tomou então uma medida que a todos colheu de surpresa: convocou, ao abrigo dos poderes que a Lei lhe conferia, uma reunião do Conselho Escolar para o dia, local e hora em que Américo Tomás estaria no Governo Civil. Como se sabe, a falta de um professor a um Conselho Escolar só podia ser justificada com atestado médico.

4 comentários:

Chantre disse...

As primícias da idade adulta, colhidas na novidade que atemoriza tanto quanto generosamente mobiliza e compromete, afirmadas na súbita sensação de liberdade (e de algum poder, por que não?), num local distante e num desempenho que se crêem provisórios mas encantam, poderão ser um universal. A tradução do seu é bonita, prof Serra.

Isabel X disse...

Continuo a gostar muito destes testemunhos e a lê-los com muito agrado. Há uma espécie de cumplicidade que resulta da escrita na primeira pessoa, na condição de que se entrelace, de modo hábil, com as circunstâncias gerais. É o caso!

Destaco apenas dois aspectos (podiam ser muitos outros!):

1) É melhor tirar as "..." da aprovação materna das instalações de Castelo Branco. Por muito independente que se seja, a aprovação das mães é sempre fundamental, em qualquer idade.

2) A história de o reitor convocar um Conselho Geral para um domingo a fim de obter quorum para cumprimentar o Presidente.

Valia tudo? Não havia (com certeza) cobertura legal, mesmo naquele tempo, sob aquele regime político, para convocar uma reunião ao domingo. Nem devia ser possível passar atestado médico para uma "falta" ao domingo...

Não era mesmo um Estado de Direito!... Não que eu fique admirada pela constatação. Já sabia disso. Não pensei que se chegasse a tanto (ou tão pouco, afinal).

Além de que me parece tudo isto muito pouco católico!...

- Isabel X -

Chantre disse...

...mas muito "republicano", cara Isabel X.

Isabel X disse...

..."republicano", sim, sem dúvida, caro Chantre.

- Isabel X -