terça-feira, 2 de novembro de 2010

A memória

as imagens reais ou imaginárias, que prosseguem até ao sono
as imagens de um momento banhadas por uma luz que só a elas pertence


Desvaneceram-se todas repentinamente, como acontece com os milhões de imagens que se perfilam por detrás da cara dos avós que morreram há meia centena de anos e dos pais que também já morreram. Imagens que nos retratam adolescentes traquinas no meio de pessoas que desapareceram antes mesmo de termos nascido, enquanto na nossa memória estão presentes os nossos filhos ao lado dos nossos pais e dos nossos colegas de escola. O mesmo acontecerá um dia na lembrança dos nossos filhos, por entre netos e pessoas que ainda não nasceram. Tal como o desejo sexual, a memória nunca se detém. Coloca os mortos a par dos vivos, os seres reais a par dos imaginários, o sonho a par da história.

Annie Ernaux, Les Années. Paris, Gallimard, 2008. p. 14-15.

3 comentários:

Chantre disse...

Belíssima. Ça suffit.

Cláudia disse...

Esquecidos

Porcelana disposta,
Cristal composto,
De fundo rosto,
Álvura intácta.

Nas mãos,
No céu.

Quantos dias...
Tantos fios!
Houvera saber?
Quais, enfeites.

Sempre, tecer,
Sempre, bordar;

Limpa, gomada e reta,
Invisível proeza,
Toalha de mesa.

Isabel X disse...

A memória vive em nós, principalmente quando dela não temos consciência. É em nós de um modo transcendente, presente, se é que me faço entender.

A propósito, este excerto de um livro que li há pouco, exemplo de como as situações se gravam na memória e lá permanecem para sempre, se tornam parte de nós, se tornam aquilo que somos:

"uma terça à noite deu com o pai na despensa, de costas para ele, abraçado à empregada, a avançar e a recuar idêntico à bomba do poço no meio das prateleiras de pacotes e frascos, a empregada enquanto os pacotes e os frascos tremiam
- Nunca mais acaba senhor?
uma embalagem de sal inclinou-se e tombou, não esqueceria nunca o dedo do pé livre do chinelo a que faltava a unha nem os ganchos do carrapito escorregando de banda, a empregada
- Olhe o seu filho a ver-nos
o pai um impulso fundo em que se tornou vários e à medida que se recompunha palavras onde até então suspiros
- O meu filho?
a cruzar-se com ele em silêncio arrebanhando os últimos pedaços seus, a camisa que ele conhecia e escuridões impossíveis de decifrar no interior do cinto, não voltaram à nascente do Mondego, não tornou a ouvir
- sabes?
espiava-o à mesa sentindo que o espiava por seu turno
- Aquele não é o meu pai
já não podiam ser amigos nem conseguia orgulhar-se quando ele ganhava ao ténis e a expressão das estrangeiras do hotel dos ingleses parecida com a da empregada embora as unhas dos pés perfeitas, a mãe uma empregada na noite do quarto dado que os freixos
- A tua mãe
e a sua indignação a aumentar, o pai a buscar a bola sozinho a enganar-se no ponto onde caíam, não desciam o Mondego juntos, cada qual vinha de pedra em pedra separado do outro, a mãe a ascender do crochet
- O que se passa entre ti e o teu pai?
uma embalagem de sal a desfazer-se de imediato no chão e ele
- Nada"

- António Lobo Antunes, "Sôbolos Rios que vão", Dom Quixote, Lisboa, 2010, p.p. 76-77


É assim, parece-me, que a memória é em nós.

Aprendi a compreender a escrita de Lobo Antunes exactamente nessa perspectiva. Os nexos causam-se de afectos, de momentos vividos, sempre presentes nos momentos que estamos vivendo.

Aprecio a escrita deste autor, apesar do seu êxito comercial, não a pessoa que ele é.

- Isabel X -