Vasco Pulido Valente hoje, no Público:
Para quem viveu sob Salazar - e já deve haver pouca gente -, o que falta nesta biografia é, naturalmente, a atmosfera do regime. Porque não existia uma ditadura, existiam milhares. Cada um de nós sofria sob o seu tirano, ou colecção de tiranos, na maior impotência. A família, a escola, a universidade, o trabalho produziam automaticamente os seus pequenos "salazares", que, como o outro, exerciam um autoridade arbitrária e definitiva que ninguém se atrevia a questionar. A deferência - se não o respeito - por quem mandava era universal; e essa educação na humildade (e muitas vezes no vexame) fazia um povo obediente, curvado, obsequioso, que se continua a ver por aí na sua vidinha, aplaudindo e louvando os poderes do dia e sempre partidário da "mão forte" que "mete a canalha na ordem".
Só num ponto, essencial, Salazar perdeu. Queria um país resignado à pobreza cristã e Portugal, se continua pobre, não se resigna agora à pobreza com facilidade e abandonou a Igreja. Verdade que Salazar se esforçou para conservar a sociedade rural em que nascera e a Coimbra beata e conformista em que se educara. Verdade também que durante 30 anos tornou Portugal uma grande aldeia, onde o "progresso" chegava, quando chegava (uma ponte, uma estrada, aqui e ali a electricidade), por dádiva do Altíssimo. Mas, depois da guerra, mesmo ele se viu obrigado, para sobreviver, a permitir que o mundo moderno passasse a fronteira, embora lentamente e por uma frincha. E o mundo moderno desorganizou o Portugal manso e miserável que ele com tanta devoção construíra. O preço que pagámos pela ditadura desse provinciano mesquinho é incalculável.
domingo, 5 de setembro de 2010
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2 comentários:
insightful, as ever.
Sim, lúcido, como sempre. Até no primeiro parágrafo (suprimido).
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