domingo, 23 de novembro de 2008

Grandela, Relvas, Bordalo

Breve registo de um dia - o de ontem - particularmente preenchido.
De manhã, última sessão do Colóquio Lisboa e a República, promovido pela Câmara Municipal de Lisboa, cujo comissário científico foi António Reis. Tema da sessão: "Lisboa há 100 anos". Ana Paula Pires traçou uma panorâmica da sociedade lisboeta dos finais do século XIX e das mudanças verificadas na transição do século. Daniel Alves caracterizou a Lisboa do pequeno comércio, identificando os ramos de negócio e a sua distribuição pela cidade. Eu revisitei o percurso de Grandella e procurei fixar um retrato do comerciante, do activista cívico e do político. Paulo Ferreira de Castro apontou os aspectos dominantes do gosto musical dos lisboetas nas vésperas da República e surpreendeu a assistência cantando os versos de A Portuguesa com a música de A Marselhesa e os versos de A Marselhesa com a música de A Portuguesa. Rosalia Vargas, vereadora da Cultura, encerrou o colóquio com a apresentação dos trabalhos realizados  pelos meninos de uma escola primária das Gaivotas depois de terem visitado a exposição urna pela lista republicana de Lisboa!" Foi assim há 100 anos (na Galeria de Exposições dos Paços do Concelho).
Segui para a Assembleia da República, depois de desafiar o Prof. Paulo Ferreira de Castro a visitar a exposição do dirigente republicano que mais cultivou a música. Cheguei em cima da hora (consegui evitar as sequelas do ensaio do terramoto) ao local de encontro com os "convocados" pelo João Miguel Azevedo Santos para uma visita guiada a José Relvas, o conspirador contemplativo.
A exposição está a chegar ao fim. Dia 29, o próximo sábado, é o ultimo dia em que pode ser visitada. Esta era pois a minha última visita. Gostaria de ter sabido transmitir às duas dezenas de visitantes que me escutaram durante duas horas o entusiasmo e o prazer com que eu e a pequena equipa de investigação (Laurinda Santos Paz, Jorge Estrela, Nicolau Borges) preparámos este trabalho, entusiasmo e prazer que se transmitiu à equipa de restauro (em especial à Maria José) e ao atelier de Design (Nuno Gusmão). Este comissariado desempenhei-o em condições muito particulares de calendário, representando um esforço concentrado para o efectivar em tempo útil e dignas condições técnicas e científicas.
Nas escadarias da Assembleia, uma mulher ainda jovem, uruguaia, perguntou a um dos do grupo se a aceitariam na visita. Evidentemente que sim, respondi. Por diversas vezes, ao longo do périplo, encontrei o seu olhar vivo e atento, procurando acompanhar as minhas palavras e seguir as minhas sugestões. A esta ouvinte inesperada e desconhecida dediquei a visita que mais lamento não ter conseguido fazer. Uma parte da minha história - que nos ultimos dois anos passou pelo estudo da figura de José Relvas, pela Casa dos Patudos e por Alpiarça - ficou ali.
O Eng.º João Miguel Azevedo Santos é um colega mais novo dos bancos do Colégio onde fizemos o liceu. Redige uma newsletter com informação sobre eventos culturais (pode ser lida aqui às sextas à noite ou sábados de manhã ou solicitada por mail). Pôs a circular a visita de ontem e recebeu as inscrições. Entre elas, a de outros quatro ex-alunos do colégio. E entre estes últimos, a de Manuela Gama Vieira, assídua comentadora deste blog, que veio da Sertã com a sua exuberante simpatia e um saco de preciosos livros patrocinados pela Câmara Municipal onde trabalha (uma nota de sua autoria sobre a visita à exposição pode ser lida no blog dos antigos alunos).
Em Óbidos, onde cheguei com meia hora de atraso, era inaugurada uma exposição intitulada Bordalo Contemporâneo e contemporâneos com Bordalo, comissariada por Ana Calçada e Elsa Rebelo. Grandes peças de Rafel Bordalo Pinheiro foram produzidas expressamente para esta exposição e são mostradas na galeria Nova Ogiva com uma montagem despojada, que recorre aos próprios suportes utilizados na fábrica, mas muito eficaz. No catálogo, há textos de Ana Calçada, Elsa Rebelo, Isabel Xavier, Isabel Castanheira, Rodrigo de Freitas, e "Joaquim B. Serra". Convidado a falar, remeti os ouvintes para o meu texto no catálogo e tentei homenagear a persistência dos homens.
Chegámos aqui porque houve indústria, que sobreviveu, com empresários que fizeram invstimentos em instalações e trabalho, e porque houve muito trabalho especializado, tecnicamente habilitado. Chegámos aqui porque diversas gerações se esforçaram por começar de novo. A Fábrica de Faianças das Caldas da Rainha sossobrou após a morte de Rafael Bordalo Pinheiro, mas o filho Manuel Gustavo recuperou modelos e criou uma nova empresa, já lá vão cem anos. Por sua vez, esta também estava em dificuldades nos anos 1920, quando um grupo de investidores caldense se apresentou para a adquirir. Todos estes homens juntaram à suas capacidades de financiamento uma visão, um misto de sonho e de prospectiva. Se não tivesse havido empresários e trabalhadores, o que teria chegado até nós era apenas o que os museus tivessem conseguido preservar. Bordalo Pinheiro não era um grande gestor, segundo se diz, mas um artista. E sem artistas a cerâmica não teria incorporado a inovação que lhe trouxe prestígio, reconhecimento e longevidade. Também aqui houve visão, neste caso uma visão alimentada pela imaginação e pelo talento.
 Ao longo deste dia irrepetível, emocionante, viajei entre Grandella, Relvas e Bordalo, homens de poderosa visão que ajudaram a fazer o Portugal do século XX.

4 comentários:

Anónimo disse...

Aquelas cobras por detrás das vossas cabeças estão mesmo presas à parede?
MT

Anónimo disse...

Apesar de uruguaia,falo português.
Através da vida de José Relvas, aprendi como faz sentido a frase do vosso grande Fernando Pessoa- "Sê Plural Como o Universo".
Muchas gratias!!!

João B. Serra disse...

MT:
Não se preocupe. Não sou completamente imune, mas julgo que resistirei a uma eventual mordedura.

Uruguaia:
Gracias escreve-se com c, como em "graciosa".

Anónimo disse...

Esta teve mesmo GRAÇA!!!
(Influências ainda...do latim.)
No meu país,não sendo lusófono, a língua portuguesa é de ensino obrigatório.
Muchas gracias