em memória de meu irmão António (1952-1972)
Dizem que foi a década de todas
ou, enfim, das maiores
convulsões sociais e de costumes.
Cá no rectângulo pouco se notava
embora já houvesse televisão
e vanguardas literárias
a algumas mulheres tomassem já a pílula
e as primas mais velhas começassem
a usar mini-saia.
Era uma época diferente:
ensinava-se ainda a respeitar
a autoridade dos mais velhos
e a venerar a antiga trilogia
em que já menos gente acreditava.
Nas escolas havia grandes mapas
de Angola, Moçambique e das restantes
províncias ultramarinas
para mostrar que Portugal media
bem mais do que a Europa.
Aprendíamos tudo: a ler, a fazer contas
e a decorar sem saber como
todas as dinastias e batalhas,
todos os rios com os seus afluentes
e todos os ramais de cada linhas férrea.
Mais tarde, pouco a pouco, percebíamos
que o Mundo era maior,
que era uma coisa estranha e fascinante
e em 68 ou em 69
era através de ti que eu descobria
os Beatles e os Stones;
as canções de Bob Dylan protestando
contra a eterna guerra do Vietname;
as barricadas de Paris;
a dietilamida do ácido lisérgico
que alguns tomavam, como se o infinito
fosse apenas questão de bioquímica;
os livros e os discos proibidos
que toda a gente ouvia;
o retrato do Che, obrigatório,
que também tu quiseste pôr no quarto;
e as emissões de Argel em ondas curtas
que nas noites de férias escutávamos
com o prazer dos gestos clandestinos
pla madrugada fora
no pátio dessa quinta onde não mais voltei.
Era depois da morte, meu irmão
- pobre revolucionário do Vává,
adolescente em fuga até ao fim,
rebelde e todavia inofensivo
como outros James Dean da Avenida de Roma
com quem ias colar alguns cartazes
nas eleições de 69
irrompendo nas motos a alta velocidade
em busca de razões para salvar o mundo
ou nisso procurando simplesmente
alguma adrenalina.
Era depois da morte, irmão mais velho,
anjo de puro fogo ou puro vento,
paradigma dos meus anos 60,
confiando talvez noutro futuro
que nunca conheceste e sempre me pareceu
um tanto folclórico, é verdade
- porque eu, que já não fui revolucionário,
me habituei depressa a contemplar
os logros dessa década afinal
com o seu quê de sinistro
embora hoje tenda a comover-me
com os mitos fundadores da tua juventude
graças ao teu sorriso
cuja luz nunca soube decifrar.
Passaram trinta anos, cresceu já
isso a que chamam outra geração:
este rectângulo é mais europeu,
tornámo-nos um pouco mais parecidos
com o resto do planeta, mas não sei
que monstro devorou a nossa eternidade,
que sombra ocupa agora o teu lugar
neste mundo mudado, neste mudo
aceno do milénio quando volto
a esta década infantil
só pra te perguntar trinta anos depois:
porque me abandonaste?"
Fernando Pinto do Amaral, Pena Suspensa, D. Quixote, 2004
4 comentários:
Um "in memoriam" comovente e BELÍSSIMO.
No retrato da época revejo-me inteiramente, também nasci em 1952.
Fernando Pinto do Amaral diz "logros dessa década afinal
com o seu quê de sinistro".
A década de 60 é a década de todos os sonhos, a década de toda a liberdade, a década em que é "proibido proibir", em que "era razoável exigir o impossível". O boom económico, artístico, ideológico, cultural e artístico, sem paralelo no século XX, permite tudo isto.
O reenquadramento da juventude e da contestação que o fim da guerra do Vietnam, a crise do petróleo de 73 e a queda dos mitos do Leste (China e URSS) favorecem, transformam os hippies em yuppies (esses sim, sinistros, individualistas e sem valores).
Só talvez os deserdados de Reagan e Thatcher (os Punks e desempregados da década de 80) vão retomar essas bandeiras libertárias, embora num enquadramento social completamente diferente (oposto?).
Não tem razão Pinto do Amaral, provavelmente mais influenciado pela morte do irmão e a sua idade, do que por uma análise desapaixonada da época.
O texto é muito sentimental, escrito por alguém a quem os anos sessenta roubaram o irmão. É compreensível o que ele diz, o jj esquece: - as drogas - a morte dos Kennedys - do Luther King - o vietnam - muita coisa correu mal e não foi muito o que ficou desse tempo.
Gostei de ler, mas não conhecia o autor.
Pertinente esta alusão a um "monstro" no dia de hoje, 7 de Novembro de 2008. Apenas uma ligação minha.
Abraço.
Paulo Prudêncio.
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