Um depoimento de João Jales, extraído do seu conto "Anna Karenina - 2", publicado no blog dos Antigos Alunos do Externato Ramalho Ortigão. Um belo texto de memórias, rico de informação e de interessantes observações.
"[...] Leiria era muito diferente das Caldas. O ambiente era menos sofisticado, apesar da maior dimensão da capital de Distrito, o comércio menos atractivo, os espaços de convívio, como o parque e os cafés, menos animados, com menos gente nova e uma diminuta presença feminina. Uma aldeia grande, de abastados proprietários rurais, com vivências e costumes condicionados pelo bispo e a proximidade de Fátima.
Encontrávamo-nos habitualmente na Praça Rodrigues Lobo, já que o consultório do meu Pai se situava numa pequena transversal, a R. da Graça. Foi a existência desse consultório que motivou a instalação de duas lojas de óculos, que ainda hoje lá estão, uma na própria rua e outra na esquina. Logo a seguir havia o café Lereno, com uma esplanada sob as arcadas. Também continua no mesmo local, embora completamente remodelado e com outro nome. Nunca lá ficávamos muito tempo, a Teresa não queria ser ali vista comigo.
Atravessávamos a rua e íamos até ao parque, meia-dúzia de canteiros com duas ruas no meio e dois campos de ténis do outro lado do rio. Havia uns barcos para alugar e até alguns pescadores mas, em 1969, o Liz já estava muito poluído devido aos curtumes instalados a montante da cidade. Só mais tarde foram desactivados, mudando-se para a zona de Alcanena. Havia pouco que fazer naquele espaço, a “esplanada” existente por trás do edifício do Turismo era ao nível dos “tábuas” que eu costumava ver nas praias e tinha como clientes dois ou três idosos etilizados. O ténis estava habitualmente deserto, como confirmavam o Tó Zé Hipólito e o Jorge Pedro, habituados a jogar nas Caldas, onde os campos eram disputados e marcados com dias de antecedência; aqui bastava aparecer e jogar.
Atravessávamos a rua e íamos até ao parque, meia-dúzia de canteiros com duas ruas no meio e dois campos de ténis do outro lado do rio. Havia uns barcos para alugar e até alguns pescadores mas, em 1969, o Liz já estava muito poluído devido aos curtumes instalados a montante da cidade. Só mais tarde foram desactivados, mudando-se para a zona de Alcanena. Havia pouco que fazer naquele espaço, a “esplanada” existente por trás do edifício do Turismo era ao nível dos “tábuas” que eu costumava ver nas praias e tinha como clientes dois ou três idosos etilizados. O ténis estava habitualmente deserto, como confirmavam o Tó Zé Hipólito e o Jorge Pedro, habituados a jogar nas Caldas, onde os campos eram disputados e marcados com dias de antecedência; aqui bastava aparecer e jogar.
Os motivos de interesse em Leiria resumiam-se quase só ao castelo, que estava nessa época em muito mau estado de conservação, com pedras caídas e ervas por todo o lado. Depois de visitar um desolado salão e subir a duas muralhas, nada mais havia para ver. Tenho ideia de estar entregue ao exército, já que havia sempre soldados por todo o lado. Era um dos destinos dos nossos passeios.
As nossas conversas incidiam sobre as nossas leituras, éramos ambos leitores compulsivos, e sobre as músicas que ouvíamos … para ser mais exacto sobre música falava eu, já que a Teresa nem se atrevia a dizer o que ouvia e do que gostava, depois de ter sabido as minhas extremas e radicais opiniões sobre o que passava no Rádio Clube Português ou na Emissora Nacional em Onda Média. Só em FM se ouvia boa música mas, nessa altura, pouca gente tinha acesso à Frequência Modulada, à sua qualidade de emissão e melhores programas. Falávamos também das aulas, dos professores, dos colegas, dos estudos. Soube com espanto que o Liceu de Leiria não tinha turmas mistas, excepto nalgumas disciplinas do 6º e 7º Ano, que tinham muito poucos alunos. Soube, mais tarde, que só após o 25 de Abril esta prática foi abandonada, o que mostra o conservadorismo reinante na capital do distrito. A Teresa nem queria acreditar que num colégio “de padres”, como o Externato Ramalho Ortigão, eu nunca tinha conhecido turmas unisexo, enquanto ela, no Liceu, nunca tinha estado numa turma mista!
Nunca soube exactamente onde morava, ela fugia dessa área, com medo da família e dos vizinhos, passeávamos sempre na zona central, lanchando ocasionalmente na Pastelaria Soraya, com um ambiente bem diferente da Zaira apesar da presença de algumas senhoras, e onde rareavam, ou nem existiam, casais da nossa idade. Mas, diga-se em abono da verdade, nunca me pareceu sermos alvo de qualquer curiosidade ou coscuvilhice dos frequentadores, talvez o facto de sermos ambos desconhecidos naquele meio nos fizesse passar despercebidos. Só o velho empregado, fardado, parecia exibir delicadezas e cerimónias exageradas, mas éramos imunes a esse tipo de ironia, motivada pela nossa idade. Além da Soraya havia o Lísea, em frente ao Parque, frequentado pelos proprietários rurais e políticos locais, mas não era um local para gente nova. O Café Santiago, com restaurante em cima, era semelhante no conceito, mas ficava a milhas da qualidade do “nosso” Capristanos! Situava-se na zona do mercado, para onde a cidade se começava a expandir. Em frente havia o Colonial, com bilhares, mas nunca lá fui com a Teresa, as meninas não jogavam bilhar.
[...] Leiria não ajudava. Não me lembro de haver um museu em Leiria, o parque era minúsculo e pouco frequentado, a sua esplanada era parecida com as barracas do Levy existentes no Parque D. Carlos I, nos anos 40, e que eu só conheci em fotografias, claro. Os cafés eram soturnos, ver montras era um exercício entediante, havia um só cinema (inaugurado em 66; quando lá fiz a 4ª classe, em 64, só existia um barracão de madeira). Diziam-me os amigos que lá moravam que às oito horas a cidade morria, não se via vivalma. Nunca fui obviamente aos bailes do Ateneu nem do Ginásio de Leiria (onde residia então o já famoso Orfeão, uma excepção numa cidade culturalmente adormecida). Mas todos me garantiam que esses bailes não tinham a animação e a frequência do Lisbonense e do Casino. Muitos leirienses faziam uma hora de caminho para os frequentar nas décadas de cinquenta e sessenta. Como vinham também às compras à Góia , à Tertúlia, à Tália e ao Turita, por exemplo.A malta nova encontrava-se na sede da Mocidade Portuguesa, junto ao Hotel Liz, frente ao velho Hospital, do outro lado do rio. Muitos deles fardados, o que era, para mim, um espectáculo inusitado nessa época. Vi juntarem-se ali jovens do Liceu e da Escola, apesar da rivalidade que se dizia existir entre eles. Mas quando soube que se “insultavam” de “papo-secos” (Liceu) e “broas” (Escola), percebi que não era grave…"
A imagem reproduz um bilhete postal da época, com uma fotografia da cidade de Leiria tirada do castelo.
7 comentários:
LI e comentei esta história no blogue do E.R.O..Acho a sua menção aqui justa porque me pareceu interessante.Conheci bem as duas cidades no final dos cinquenta até final dos sessenta e o autor descreve bem as diferenças que eram visíveis.Mas porquê os dois desenvolvimentos diferentes a seguir?A velha história do Governo Civil não pode explicar tudo!
Sim, não pode explicar tudo. Creio que há um feixe de factores, mas permanece por explicar qual terá sido determinante. Este é um bom tema para debate. Voltaremos a ele, em breve, assim o espero.
Quero agradecer ao Vitor as suas apreciações, tanto aqui como no Blog do ERO, a propósito deste meu texto.
Não consigo, por este nome, "localizá-lo" mas penso que será mais velho do que eu.
Se conheceu Leiria e Caldas todos esses anos
terá seguramente algumas reflexões sobre as assimetrias no desenvolvimento das duas cidades que poderá partilhar connosco.
Li de uma assentada e com um sorriso este texto, que me fez recordar 1971, ano em que, vinda do Porto, passei a viver Leiria.
Apesar de, ao tempo, ter apenas dez anos, recordo bem as diferenças. As idas às compras à Goia (cujo proprietário era do Norte) e que num raio de 60Km de Leiria era das únicas lojas capazes de substituir uma demorada e cansativa viagem ao Porto. Também me recordo da Zaira e de uma pastelaria junto ao jardim que, julgo, ainda hoje existe.
Anos mais tarde, os sábados à noite o 'Ferro Velho' única boite (como na altura se dizia) suficientemente longe de Fátima, para que pudesse ser autorizado o seu funcionamento.
O texto fez-me sorrir e só lhe acrescentaria, em Leiria, uma classe de récem industriais que o plástico tornou, muito rápidamente ditos ricos e o Instituto da Juventude (seria assim que se chamava?) (ao Terreiro junto ao escritório do saudoso Dr. José Henriques Vareda, onde nos reunia-mos, até ao Verão quente.
Curioso, e elucidativo, este comentário de alguém que viveu, embora com menos sete anos, uma experiência semelhante à minha em Leiria.
O Blog dos Antigos Alunos do ERO, para onde remete o Link incluído neste post, também reflecte sobre estas realidades dessa época. Está MPO convidada a visitar. JJ
Ora vamos lá repor a verdade dos factos. O Liceu de Leiria em pleno ano lectivo do 25 de Abril tinha turmas mistas, pois eu fazia parte de uma delas. quanto às diferenças entre Caldas e Leiria admito que eram as descritas, mas depois nos anos setenta Leiria progrediu muito e Caldas estagnou e eu sei do que falo porque sou leiriense e estudei no Magistério de Caldas de 79 a 82.
Nessa altura Caldas É que me parecia uma aldeia grande com a Góia em completo declinio.
A vida noturna sim era animada, ainda pelo Ferro Velho,Inferno da Azenha etc.
É sempre bom ver que um texto, embora escrito há já algum tempo,continua a ser lido e comentado.
Quanto aos factos receio não ver qualquer "reposição".O meu texto refere-se ao período entre 1969 e 1971,altura em que muito poucas turmas do Liceu de Leiria eram mistas-só o eram quando os alunos eram insuficientes.As minhas fontes são professores,alunos e até um reitor do Liceu - que só teve todas as turmas mistas no ano lectivo de 1974/1975.
A Laura escreve "depois nos anos setenta Leiria progrediu muito e Caldas estagnou e eu sei do que falo porque sou leiriense e estudei no Magistério de Caldas de 79 a 82" mas isso é outra história, de outra época, que o Blog do ERO acolherá se a Laura aquiser contar.
Obrigado pela atenção e pelo comentário.
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