Se tivesse que morrer esta noite regressava
regressava de novo à tua espera à mesma rua
Talvez a mais deixasse aqui apenas
a folha de um recado meio esquecido
Regressava às horas desta tarde relendo devagar
de minuto a minuto o número da tua porta
onde chagaria como há pouco outra vez adiantado
Regressava ao salgueiro onde agora moras
Regressava enquanto a noite que me leve se afastasse
e não te dizia adeus - olhava a terra
as árvores de água profunda onde os rios nascem
ouvindo os pássaros e a brisa do crepúsculo
quando o crepúsculo os confunde num só ramo
Se tivesse que morrer esta noite regressava
navegando a coberto da morte por estas esquinas
que se aceram entre os meus passos e os teus dedos
no olhar amargo que rasguei para te ver
onde a carne do rosto quebra os últimos espelhos
Se tivesse que morrer esta noite regressava
junto de ti até ao fim por um momento
para te dizer que amanhã é outro dia
e que é sempre amanhã ainda onde te encontro
Miguel Serras Pereira, Trinta Embarcações para Regressar Devagar. Lisboa, Relógio d'Água, 1993.
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