Foi assim, pois, que já tendo perdido na montanha a primeira modéstia, Martim foi perdendo sem sentir as derradeiras amarguras até que já não era monstruoso uma pessoas se dar função de pessoa e de "construir". O que lhe pareceu facílimo. Até hoje tudo o que vira fora para não ver, tudo o que fizera fora para não fazer, tudo o que sentira fora para não sentir. Hoje, que se rebentassem seus olhos, mas eles veriam. Ele que nunca tinha encarado nada de frente. Poucas pessoas teriam tido a oportunidade de reconstruir em seus próprios termos a existência. À nous deux, disse de repente interrompendo o trabalho e olhando. Porque era só começar.
Mas como se tivesse tido um sonho infantil olhou de novo o passarinho que cantava e se disse: que faço dele?
Pois já na sua primeira visão um passarinho não cabia. Tudo lhe foi dado, sim. Mas desmontado e aos pedaços. E ele, com peças sobrando na mão, não pareceu saber como montar a coisa de novo. Tudo era dele para o que quisesse fazer. No entanto a própria liberdade o desamparava. Como se Deus tivesse atendido demais o seu pedido e lhe entregasse tudo. Mas tivesse ao mesmo tempo se retirado. A campina era toda de Martim, e mais um passarinho que cantava. E dele também, nesse tempo curto, era a vida inteira. E ninguém e nada podia ajudá-lo: fora exactamente isso o que ele próprio preparara com cuidado, e até com um crime preparara. Mas se astuciosamente começara pelo mais fácil - que mais simples que um passarinho? - então perguntou-se embaraçado: que faço de um passarinho cantando?
Clarice Lispector, A Maçã no Escuro. Lisboa, Relógio d'Água, 2000 [1961]. p. 146-147.
terça-feira, 18 de janeiro de 2011
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
Há palavras que ressoam em nós como um toque de alvorada; que causam dor, uma dor feliz de premonição e descoberta de algo novo que se sabia sem saber. As coisas ganham sentido (pela primeira vez) para logo nos atemorizarmos dele.
Somos Martim, afinal! Sem sabermos que fazer da simplicidade de um passarinho cantando...
- Isabel X -
Com relação não só ao texto:
Há um mar de possibilidades que apesar de não vermos, sabemos que está lá!
Há também o Martim-pescador.
É Martim, é pescador e é pássaro.
Então, voltando ao texto dentro da possibilidade, o homem que vê o pássaro e por que não, também o pássaro ver o homem?
Quantas perspectivas de fato podem haver, sendo possíveis em verdade?
Também, apreciando o comentário de Isabel X, e se me permite esta, cuja solidez trás a reflexão.
Pois, dizem os sábios que Deus está em todas as coisas!
Nem perto de ser um sábio, mas, ouso, e é real um lugar com todas as coisas em que Deus está, pois este lugar é Portugal.
Enviar um comentário