quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Memórias: José Aurélio, Borges de Macedo e as gárgulas da Torre do Tombo (2)

Eu começava a ficar inquieto. O Professor Jorge de Macedo parecia ignorar a presença do escultor José Aurélio, envolvendo-se numa fascinante teia de observações que faziam tábua rasa de nada menos que 23 anos das nossas vidas. A situação era absolutamente irreal: Macedo voltara a 1973, retomando o espírito vigoroso e solto das suas aulas mais brilhantes e eu vestia a pele do aluno preso do espectáculo e consciente do privilégio.
Foi a custo que consegui chamar a atenção do nosso anfitrião para o meu amigo. O Professor virou-se então para José Aurélio e perguntou:
- Então, o que o traz por cá?
Uma pequena luz de aviso acendeu-se no meu espírito a esta pergunta, mas não me ocorreu nada para desviar o caminho da conversa. O escultor respondeu:
- Viemos aqui falar sobre as gárgulas.
- Ah, sim, as gárgulas! – exclamou o Professor Macedo, como se após aquela introdução, que mais parecia a conclusão de uma aula imaginária de História da Cultura Moderna iniciada no dia anterior, nada mais natural do que defrontar o problema das gárgulas do edifício de que era Director.
E de facto assim foi. Com a mais extraordinária das naturalidades, Borges de Macedo elocubrou sobre gárgulas em geral e sobre as gárgulas da Torre do Tombo em particular.
- Tenho uma ideia sobre o significado das gárgulas – afirmou a dado passo. O edifício da Torre do Tombo tem uma estrutura tumular. Compreende-se: aqui se guardam os documentos relativos à história de Portugal. As gárgulas são o elemento através do qual a Torre/Túmulo comunica com o exterior. Com as suas bocas abertas, elas fazem ecoar o grito “Aqui jaz a memória da Nação”.
Macedo fez uma pausa e visando de novo o meu amigo, absolutamente esquecido das circunstâncias que rodeavam aquela audiência, perguntou:
- E qual é o seu interesse no assunto?
Aí, temendo o pior, vim em socorro do artista:
- O Escultor José Aurélio é o autor das gárgulas – informei eu.
O professor olhou pela primeira vez atentamente para o até então terceiro elemento da sessão. Findos esses intermináveis momentos, disse:
- Mestre, tenho muito gosto em conhecer o autor das gárgulas. Aliás em reconhecê-lo, pois o seu perfil é o de um homem gargular.
Fosse o que fosse que isso queria dizer, não houve tempo para o averiguar. O Professor Jorge de Macedo passou então a dirigir-se directamente ao seu novo interlocutor e quem passou a explicar o significado de cada uma das oito gárgulas integradas no edifício da Torre do Tombo. Agora reconduzido à condição de espectador, eu via José Aurélio cada vez mais suspenso das palavras de Macedo, surpreendido pela agudeza das observações e sobretudo pela riqueza de conhecimentos que revelava acerca do processo de manufactura daquelas peças.
Houve um momento em que Jorge de Macedo se referiu aos textos, redigidos numa escrita binária, com que o autor identificou cada uma das gárgulas. Aí o escultor não se conteve:
- Mas como é que o Professor sabe isso? Essas legendas não são visíveis do solo.
O Professor levantou-se e disse:
- Venham daí comigo. Vamos lá fora ver as gárgulas.
Quando chegamos junto da primeira gárgula, apontou para o alto e expôs o significado que lhe atribuía, em complemento com o que o autor fizera gravar na pedra. E sorrindo para José Aurélio, acrescentou:
- Sabe Mestre, há binóculos...
A terminar esta breve nota de uma memorável conversa sobre gárgulas, acrescento apenas que o Professor Jorge de Macedo não chegou a escrever o texto prometido nessa ocasião ao escultor José Aurélio. Em Março de 1996 faleceu. Não sei se José Aurélio guarda algum registo desta reunião. Aqui fica o meu, escrito de memória, na altura em que se celebram 20 anos sobre a a inauguração do novo edifício da Torre do Tombo.

8 comentários:

Vitor Oliveira Jorge disse...

Fantástico episódio! :))

Isabel X disse...

Gosto de histórias assim: com algo de desconcertante, de inusitado. Fui aluna da Faculdade de Letras entre entre 1977 e 1981. Lembro-me de ter sido fundamental para mim a leitura de obras de Borges de Macedo, com destaque para "Os Lusíadas e a História".

Entre os alunos falava-se muito do professor Borges de Macedo por ter acabado de ser readmitido na Faculdade. "Ninguém" se inscrevia na sua turma. Isto é, muito poucos o faziam: havia uma espécie de boicote entre os alunos que assim prolongavam (de uma certa maneira) o saneamento. Lembro-me de que teria oito alunos no ano do seu reingresso. Ao contrário do que se dizia sobre toda a sua carreira, não só tratou muito bem esses poucos mas resistentes alunos, como os "compensou" com classificações elevadíssimas, numa atitude muito diferente da que tivera toda a vida de professor, segundo se dizia. Deve haver muito sofrimento e frustração por trás de uma mudança assim, tão radical.

São muito interessantes estas histórias de vida de quem viveu destinos pessoais conturbados em função das mudanças políticas ocorridas após 25 de Abril de 1974.

Quanto às Gárgulas, são uma obra muito bem conseguida, muito bem integrada no espaço, complementando-o e contribuindo inequivocamente para lhe conferir individualidade própria. Tem que haver Gárgulas junto de um edifício tumular. Claro! Parabéns ao José Aurélio!

Outra coisa: o livro sobre as Gárgulas fez-se, embora sem a participação de Borges de Macedo, ou não?

- Isabel X -

Anónimo disse...

É um testemunho fantástico, que nos cria a inveja de não termos estado presentes. O Prof. Borges de Macedo era assim mesmo, grave, ácido, um pouco visionário, mas acimo de tudo intelectualmente brilhante.
Belíssimo exercício de ironia e bem dizer.
Não foi meu professor, mas ainda meu director.
Continuação de óptimo 2011.
Acácio de Sousa

Cláudia disse...

É sempre atual um texto que antevê relações. Talvez, para reflexão das memórias da Torre do Tombo bem como ao encontro com o artista.


Texto de um escritor austríaco.

...Agora depois de uma bifurcação feita há vinte tanto séculos, torna-se a unir com o espírito criador, o espírito investigador...
... O "INTERNUM E AETERNUM" o infinito interior, o universo psíquico, oferece à Arte ilimitadas regiões desconhecidas - o conhecimento de si mesmo - que há de ser o tema futuro das cogitações da humanidade que se envolve.
Salzburg - Páscoa, 1928.
Stefan Zweig

Joaquim Moedas Duarte disse...

Borges de Macedo era assim: desconcertante.
Um episódio a que assisti numa das primeiras aulas de Teoria da História, que fazia parte do currículo do 1º ano: Borges de Macedo fazia a chamada dos alunos, para os ir conhecendo, e todos iam respondendo em voz sumida, um pouco intimidados com a sala cheia - éramos uns 60...
Em dada altura diz o nome de uma colega nossa, muito anafadinha, muito gorduchinha, que se levanta e responde com um sonoro e desinibido:
- Presente, sou eu!
Borges de Macedo olha bem para ela e sibila, entre dentes mas bem audível:
- Vê-se bem!

Coitada da colega. Sentou-se muito enfiadinha e nem conseguia olhar à volta...

Anónimo disse...

Caro João,
É uma história muito portuguesa, para o bem e para o mal. Parabéns pelo blog.
Carlos Gaspar

Chantre disse...

Vários "dez anos" passados, emergem episódios quase caricatos, mas que não beliscam o que de positivo fica da memória do professor Borges de Macedo, antes atestam a sua intransigência ante a facilidade - como a de não aceitar "Rank Xerox" (sic. - em vernáculo, "fotocópia") no espaço da ficha do aluno onde deveria figurar uma foto ou a de, com a sua voz grave, desancar "urbi et orbi" (... e "for good") o enorme mas desprevenido algarvio que se atreveu a esperá-lo na sala de aula com uma indumentária que o professor considerou própria de "um estivador em fim de turno".

Anónimo disse...

Caro João
Como de costume gostei do que escreveu e como eu nunca escrevi nada sobre esse episódio, fica esta sua memória como registo único daquela nossa fabulosa visita ao Professor Borges de Macedo. Bem haja por tê-la escrito....
Um abraço
JA