Não estou muito seguro das razões que me levaram a aceitar o repto de José Aurélio para o acompanhar na entrevista que pedira ao Director da Torre do Tombo, professor Jorge de Macedo. Presumo que tenha prevalecido a curiosidade em saber se o meu antigo professor se lembrava de mim e que reacção a minha presença lhe suscitaria.
Estávamos, creio em 1995. Desde 1973 que eu não tinha contacto com Borges de Macedo. Fora seu aluno nas cadeiras de Teoria de História, História da Cultura Moderna e Contemporânea e História Moderna e Contemporânea de Portugal, cadeiras de bacharelato, entre 1967 e 1970. O nosso relacionamento nesse período mantivera-se relativamente distante. O professor Jorge de Macedo era indubitavelmente dos mais bem preparados docentes de História da Faculdade de Letras de Lisboa, superiormente informado e de uma inteligência fulgurante. A esta invulgar estatura intelectual, que inspirava respeito e admiração, contrapunha-se uma personalidade truculenta e um gosto pelas atitudes desconcertantes que, atenta a distancia entre docente e discente, perturbava e embaraçava muitos de nós. Em 1971/72 inscrevi-me na cadeira de 5º ano que orientava, o chamado Seminário. Com uma periodicidade semanal, passei a ouvi-lo dissertar sobre metodologia da investigação histórica, História de Portugal na primeira metade do século XIX (uma espécie de prolongamento da cadeira de História Moderna e Contemporânea, do 3º ano, a qual não ultrapassava os tempos do Marquês de Pombal). Era no âmbito do Seminário que se realizava a escolha do tema de dissertação, a tese, indispensável para se obter a licenciatura. O tema de tese era sugerido pelo Professor, e eu não escapei a essa prática, tendo aceite realizar uma investigação sobre as ideias económicas de António de Oliveira Marreca, um dos fundadores do Partido Republicano nos anos 70 do século XIX. O ambiente de Seminário e as sessões de orientação dos trabalhos de tese aproximaram-me da pessoa de Jorge de Macedo, originando uma cordialidade que até então não se pudera desenvolver. Em 1973, porém, poucas vezes nos encontrámos, tendo ele passado a desempenhar funções na equipa reitoral. Em 74 soube que fora saneado, acção que lamentei embora percebesse a inevitabilidade do acto. Não mais o encontrei. O professor Jorge de Macedo foi reintegrado na Faculdade de Letras nos anos 80, numa altura em que eu próprio ali leccionava como assistente, mas não nos chegámos a cruzar, tendo eu saído em 1984
O escultor José Manuel Aurélio era autor das gárgulas do novo edifício da Torre do Tombo inaugurado em 1990. Impressionantes na sua dimensão e projecção arquitectural, aqueles monólitos foram esculpidos nas imediações das pedreiras de onde tinham sido arrancados, em Porto de Mós. Nos anos seguintes, o autor reuniu a documentação relativa ao seu formidável trabalho – desenhos, fotografias, registos diversos – e intentou publicá-la em livro. Para isso considerou desejável que o Director da Torre do Tombo escrevesse um texto de apresentação. Para tal, pediu uma audiência ao Professor Jorge Borges de Macedo. A realização da entrevista arrastava-se, porém. O Director anuía, marcava e desmarcava, por este ou aquele motivo imprevisto. Um dia, queixando-se destas vicissitudes, o escultor perguntou-me: “Ele não foi seu professor? Acha que se nos apresentarmos os dois haverá mais possibilidades de ele nos receber?” Foi assim que entrei neste processo. Uma ou duas tentativas frustradas mais, e eis que finalmente o Professor nos recebe numa manhã de Primavera de 1995.
Na mesa do seu gabinete, o Professor Jorge de Macedo sentou-me à sua esquerda, ficando a seguir o escultor. Virando-se para mim, o meu antigo professor não perdeu tempo com preliminares e encetou uma surpreendente digressão cujo teor não me é possível reconstituir. Lembro-me de que ora versava temas literários, de Kafka a Anaïs Nin e Thomas Mann, ou filosóficos, ora enveredava por assuntos mais confessionais. A certa altura, manifestando eu surpresa pelo testemunho pessoal de uma ocorrência que tivera lugar em Londres, Borges de Macedo contou que apesar da magreza orçamental (“E você sabe as despesas que eu tinha com a minha família!”), nunca deixara de ir a Londres regularmente ao teatro e a concertos. E, olhando-me por cima dos óculos de lentes grossas, rematou enigmaticamente: “Eles não sabiam porquê nem como, mas eu andava sempre à frente deles”.
quarta-feira, 5 de janeiro de 2011
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4 comentários:
Uma das pessoas que me ensinou a pensar: Jorge de Macedo!
Mal-amado pela "inteligência académica" dos finais de setenta formada nos quinze anos anteriores, Borges de Macedo foi um prefessor brilhante. Dificilmente se encontram combinados a autoridade científica, o rigor na sala de aula, o desdém pelo supérfluo e politicamente correcto, a intransigência perante a vulgaridade e o ar do tempo, a elegância ante a injustiça que lhe foi feita, como neste homem.
Tb fui aluno de J B Macedo e fiquei marcado. Ele intimidava o miúdo de 20 anos que eu era mas, simultaneamente, seduzia-me pela clareza das exposições, a riqueza de perspectivas, as referências a múltiplas leituras. Aulas inesquecíveis, exames temíveis...
Obrigado ao João Bonifácio por esta evocação!
E eu fui aluna de B. Macedo entre 67 e 71. Subscrevo o que escreveram e também o lembro como "uma das pessoas que me ensinou a pensar". Com 18 anos, ficava-lhe imensamente grata pelos comentários, que dactilografava e agrafava à frequência, e em que se ia apoiando para pedir esclarecimentos, para mostrar relações que não captáramos, para sugerir bibliografia de aprofundamento... Via também aí uma atitude de consideração e de imenso respeito pelos alunos. Tornou-se então a minha referência de mestre: menos que aquela exigência empenhada... inaceitável. Também me divertia com o seu afã de,logo no 1º ano, nos ir tirando as peneiras...
Bem-haja pelo episódio fantástico. E agora deixou-nos cheios de curiosidade quanto às gárgulas!
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