O caso de Maria Adelaide Coelho da Cunha, contado por Monique Rutler, com argumento do jornalista Cesário Borga, no filme Solo de Violino (1990) revela um funcionamento da justiça sob todos os pontos de vista surpreendente. Maria Adelaide é por duas vezes internada num hospital psiquiátrico, o Conde de Ferreira, no Porto, em Novembro de 1918 e em Março de 1919, por iniciativa do marido, que a denuncia à policia, e após confirmação do internamento por uma Junta Médica composta por Júlio de Matos e Egas Moniz. Em Agosto do mesmo ano é autorizada a sair do Hospital, por ordem da autoridade administrativa, o governador civil, e após intervenção de um advogado sindical que obtém uma diligência do juiz – que vai ao Conde de Ferreira ouvir a queixosa.
Maria Adelaide Coelho, filha de um dos fundadores do Diário de Notícias (Eduardo Coelho) era, à data dos acontecimentos, casada com Alfredo Cunha, director de administrador do mesmo diário. Com 49 anos, apaixona-se pelo motorista particular da família, Manuel Claro, de 26 anos e decide fugir com ele para Santa Comba Dão, donde a policia a transportará para o Conde de Ferreira.
Há semelhanças entre esta história e a que Clint Eastwood narra em A Troca (2008), um filme igualmente baseado em factos acontecidos: uma mulher é internada num hospital psiquiátrico contra sua vontade, às ordens da polícia, por se recusar a reconhecer uma criança que a as autoridades pretendem ser o seu filho desaparecido. Mas enquanto na história americana, passada em 1928, a libertação de Christine culmina um longo processo de mobilização da opinião pública levada acabo por um reverendo presbiteriano, que suscita o patrocínio de um advogado, no caso português é o aparelho judicial que se ergue para repor os direitos da mulher.
Ora sucede que tudo isto acontece entre Novembro de 1918 e Agosto de 1919. A República vive um dos seus momentos mais complexos e delicados. Em Dezembro de 1918 o Presidente, Sidónio Pais, morre assassinado. As instituições politicas centrais da República são todas elas varridas pela crise. O Parlamento elege um novo Presidente, por um período limitado. Mais tarde será dissolvido. Pelo meio, a Monarquia é restaurada no Porto e o país entre em guerra civil. É certo que a Grande Guerra se deu entretanto por terminada, mas o cortejo de consequências terríveis continuou a abater-se sobre o pais, de mistura com um ano de “pneumónica” que se saldou num número incontável de mortos. Que por entre estes tumultuosos dias, um Governador Civil se apresente no Hospital Conde Ferreira para cumprir a ordem judicial de libertar uma senhora que cometeu o acto socialmente tresloucado de fugir com um homem de condição social inferior e de metade da sua idade, é simplesmente notável!
sábado, 23 de outubro de 2010
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10 comentários:
O que já não é notável é que Júlio de Matos e Egas Moniz, dois homens de ciência, tenham alinhado nesta farsa.
O que é notável é que muitos anos antes, o rei D. Pedro V tenha visitado Camilo e Ana Plácido na prisão, condenados por adultério, facto que o rei não temeu que as boas consciências o criticassem.
O que não é notável é que o pobre do chauffer cumpriu pena de prisão.
Que um governador cumpra ordens da autoridade judicial nada tem de notável.
Que me perdoe professor João Serra.
Notável, sem dúvida. Por outro lado, é arrepiante constatar quanto os médicos e respectivos veredictos, baseados no critério "científico", eram poderosos a ponto de darem Maria Adelaide por louca e a internarem num hospital.
Há que contar ainda com a intervenção de outro poder, o da imprensa, aqui representado pelo marido, apesar de o Diário de Notícias ser do pai de Adelaide.
Julgo que mesmo depois de libertada da condição aviltante a que se vira reduzida, Maria Adelaide continuou a viver as injúrias de uma sociedade que a não podia entender.
O que mais me impressiona é ter quase a certeza de que Júlio de Matos e Egas Moniz estavam convictos de terem razão e de estarem a agir correctamente. Delimitam-se fronteiras muito ténues no exercício de certo tipo de poderes.
Mesmo hoje em dia a condenação generalizada dos "prevaricadores" seria certa!
- Isabel X -
E o rapaz? Segundo o livro de Agustina Bessa-Luís, "O Mistério da Légua da Póvoa", Manuel Claro esteve mais quatro anos na cadeia, muito por incúria do advogado de ambos, dr. Bernardo Lucas.
Quase no fim desse livro diz a autora: "Maria Adelaide teve o título de louca porque se defendeu com a mediocridade para não se perder com um marido pedante e um filho egoísta. Não está nos mandamentos ser fiel aos que nos acorrentam, seja com ferros ou com a fortuna. Foi uma mártir, no sentido grego da palavra martus e que significa testemunha. Vamos acreditar na sua paixão pela liberdade obscura e sem evolução criadora. (...) Morreu no anonimato, que lhe deu as alegrias duma aventura heróica."
Antes, no mesmo livro, Manuel Veludo é considerado por Agustina "convidado no festival de paixão que a abalava."
E faz ainda, a propósito de Maria Adelaide, a seguinte análise:
"É inquietante pensar que andam pelo mundo criaturas às vezes ignoradas mas que têm um poder enorme sobre as outras e, sem o saber, conduzem os acontecimentos mais devastadores da humanidade: as suas guerras, as suas convulsões que produzem as alterações do mapa da Terra. Não são pessoas mais em evidência, os chefes de qualquer estado e os condutores dos povos, os profetas, os filósofos, que contribuem para as grandes mudanças. É a pessoa anónima,que se introduz como um vírus no labirinto das relações pautadas pelas leis e pelos costumes, quem decide, quem executa, quem delibera quase só pela escura matéria que é a força do desejo."
Edição de "O Independente", Lisboa, 2004 (p. 171)
- Isabel X -
Caro Xico: a sua discordância é sempre bem vinda. Mas efectivamente o meu texto. para sermos honestos, contém mais argumentos históricos comparados do que sugere a sua conclusão acerca da atitude do Governador Civil.Mas evidentemente nem me passa ela cabeça sugerir-lhe que o releia...
Caro professor João Serra,
é sempre um prazer relê-lo.
O certo, é que não são revoluções que conseguem mudar o rumo das coisas, se não as mudarmos dentro de nós. Júlio de Matos e Egas Moniz, dois positivistas e republicanos, não conseguiram extirpar de si mesmos o preconceito burguês e reaccionário de que só uma louca poderia deixar o recato de um lar estável e rico, por uma paixão. Temo que tenham sido muito mais homens mundanos do que cientistas, neste caso, exercendo até o que se chama a solidariedade masculina.
Muitos homens notáveis teve a república, tal como o governador que cita, mas o mal dos portugueses, e que os cem anos da revolução republicana bem exemplificam, não está nem nunca esteve numa coroa ou num chapéu.
E lembrando Maria Adelaide, atrevo-me a pensar se muita da raiva antimonárquica dos republicanos de então, não se devia ao facto de não poderem suportar o ascendente e poder que duas mulheres gostavam de exercer nos corredores desse poder, para desespero de muitos ministros. Estou a falar de Maria Pia e Amélia. Duas iniciadoras de muitas obras de protecção à mulher e à criança.
Também não exagere, caro Xico. Tanta revolução só para impedir a caridade de duas rainhas! Não devemos nunca subestimar o adversário... Reconheça que havia razões mais poderosas...
Quanto à solidariedade masculina, dou-lhe razão. Aquilo era até onde se podia ir na altura. Tenho para mim que, em certa medida, nem sequer se vai muito mais longe, agora!
-Isabel X -
Caro Xico
Ainda se usassem, e tirava-lhe o chapéu!
Touché! O problema é esse mesmo, caro Chantre, os chapéus já não se usam... não há como tirá-los!...
- Isabel X -
Quem, cara Isabel X, Vc? Teria de usar mais um "e". Admitindo que escreve correctamente e me visa a mim - de modo anapropriado, mas passe - permita que a esclareça do seu engano: se não é a cartola que faz o machista republicano, também não é a ausência de chapéu que inviabiliza a presença do cavalheiro.
Tenha um bom dia do Senhor.
Cara Isabel X,
Comecei por dizer que era um atrevimento supor que duas mulheres irritassem as "elites" masculinas do poder. Falei em antipatia monárquica. Porque as revoluções podiam fazer-se sem derrubar a coroa. Os republicanos nunca foram meus adversários, pelo menos assim julgo, porque me considero republicano. Adversários foram os que insistiram no 5 de Outubro.
Quanto à caridade, se entender esta com o sentido correcto da palavra, nada tenho a dizer. Se é menosprezo comum ao que actalmente a mesma representa, então cem anos após o 5 de Outubro a sua obra (a caridade da rainha) não seria necessária, como as cozinhas económicas que a república também promoveu. Lembrei-me da promoção do raio x e dos malefícios do uso do espartilho, sempre em defesa das mulheres, também "caridades" da rainha.
Maria Adelaide não foi vítima da república nem de republicanos. Foi vítima da estupidez, da cobiça e do preconceito. Tal como Amélia...
Caro Chantre,
Infelizmente enfiamos mais o barrete...(e não estou a falar do frígio dos troianos).
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