O projecto de organizar um
Guia de Portugal germinou na Biblioteca Nacional, então dirigida por Jaime Cortesão, onde Raul Proença era bibliotecário. O Grupo da Biblioteca incluía ainda António Sérgio, Câmara Reis, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro e outros intelectuais. A maior parte destes nomes tinha igualmente participado nos projectos de regeneração nacional produzidos pelo "Grupo
Seara Nova", surgido em 1921. Em 1923, o mesmo Grupo esteve na origem de um movimento designado por "União Cívica", um movimento reformador que se propunha mobilizar a elite intelectual da esquerda e da direita (de facto, teve adesão de integralistas) em torno de um programa de medidas urgentes de transformação política e institucional.
É este grupo alargado da Biblioteca, da
Seara, da "União Cívica" que Proença chama a colaborar no
Guia, sob o propósito de reunir um conhecimento qualificado sobre Portugal e a sua paisagem física e cultural. O responsável máximo pelo projecto reuniu os melhores escritores do seu tempo, os melhores especialistas em história de arte, em geografia física e humana, em arqueologia, em antropologia. O primeiro volume do
Guia -
Lisboa e Arredores - tem 700 páginas (alguns dos restante volumes ultrapassam as 1300) e contou com 25 colaboradores. Entre eles estão escritores como Aquilino Ribeiro, Teixeira de Pascoais, Afonso Lopes Vieira, Raul Brandão, Júlio Dantas, ensaístas como António Sérgio, Jaime Cortesão, Câmara Reis e Azevedo Gomes, historiadores de arte como Matos Sequeira, José de Figueiredo e Reinaldo dos Santos, investigadores de geografia e antropologia, como Silva Teles, Oliveira Ramos e Alves Pereira. O responsável gráfico da obra é Raul Lino, um dos arquitectos mais celebrados na época.
O repositório de informação qualificada contido no
Guia permitiria um outro olhar sobre Portugal. Não se tratava de proporcionar apenas ao viajante um instrumento de preparação de visitas turísticas. A dimensão extraordinária do projecto não o tornaria muito prático, nesse aspecto. O
Guia de Portugal servia não apenas intuitos de promoção turística das regiões, pois inventariava, com um modelo de fichas a que certamente não terá sido estranha a experiência do bibliotecário Proença, o património material, paisagístico e histórico das cidades, vilas e aldeias de Portugal.
Portugal é identificado aqui com o património, um conceito descritivo e plural distanciando-se da noção que o reduzia ao âmbito das belas artes. Os diversos volumes do
Guia fazem o registo dos valores territoriais, com grande soma de pormenores e graças a uma verdadeira rede de historiadores, arqueólogos e etnógrafos locais, servidos por uma cartografia adequada, que é herdeira dos trabalhos de recolha da cultura material e patrimonial efectuados por Leite de Vasconcelos, Martins Sarmento, Rocha Peixoto, Adolfo Coelho, Consiglieri Pedroso e Joaquim de Vasconcelos, na transição do século XIX para o século XX.
O século XIX popularizara na Europa os guias turísticos, com informações úteis para o viajante, e o romantismo enfatizara os guias com assinatura de autor. Escritores e jornalistas relataram as suas aventuras interiores em contacto com as criações monumentais da cultura italiana, por exemplo, ou deleitaram-se com a surpresa civilizacional da descoberta do pitoresco e do exótico.
Em Portugal, o paradigma dessa literatura de viagens é Ramalho Ortigão, com os seus relatos impressivos de múltiplas visitas e paragens, que fizeram dele um especialista convocado como “um
touriste de reconhecida competência”. Mas há outros escritores que cultivaram com sucesso de folhetinistas este género literário, como Júlio César Machado, Fialho de Almeida ou Gomes de Amorim.
Na primeira década do século XX, alguns concelhos que atraiam movimentos sazonais de visitantes, em razão dos seus monumentos, das suas paisagens, das suas termas, das suas praias, dispuseram de guias turísticos. Editados nos primeiros anos do século, esses guias continham indicações sobre os locais a visitar, informações sobre como chegar, distâncias, alojamento, restauração, etc. Conheço brochuras destas relativas a Alcobaça, Coimbra, Sintra, Braga, Lisboa, Porto, Évora, Caldas da Rainha, Leiria, Viseu, por exemplo.
Mas o
Guia de Proença distingue-se destes exemplos anteriores, pela escala, pelo método e pelos objectivos. A informação que reúne é sistemática e para todo o Pais. Pretende ser uma informação rigorosa e verificada, e não repetida de velhos almanaques. Quer-se global e não dirigida exclusivamente ao pitoresco. Tem uma base positiva, e não meramente impressiva ou subjectiva. De facto, objectiva-se no território, no lugar, e é segundo esse critério territorial que hierarquiza a informação. Cada volume do
Guia incide sobre uma “província” e no interior de cada região organiza os percursos de acordo com a riqueza patrimonial dos centros urbanos.
O
Guia de Portugal foi concebido como um repositório exigente e actualizado do conhecimento sobre a paisagem geográfica e cultural portuguesa. Mais do que um roteiro de estradas e localidades, pretendeu ser uma obra sobre o Portugal que os portugueses tinham produzido. Num certo sentido, o paradigma de Proença foi
Os Lusíadas. Proença queria os melhores do seu tempo a descrever e interpretar Portugal. Mas o
Guia não é uma justaposição de textos, porque o coordenador os reelaborou de forma a garantir a unidade de critério e a coesão formal do projecto.
A quantidade de informação recolhida nos 8 volumes de que se compõe o
Guia é impressionante. Proença e os seus colaboradores percorreram o país, elaborando milhares e milhares de fichas sobre localidades, monumentos e itinerários. É uma obra única no seu género e que permanece ainda hoje como obra ímpar da nossa cultura.
Admiravelmente bem escrita, mesmo quando o seu conteúdo é mais árido, pode dizer-se hoje que o
Guia é um livro de viagens. E que fascinante é hoje visitar locais descritos por visitantes ilustres, munidos dos livros onde eles testemunham o modo como os perceberam!
Proença dedicou este seu extraordinário trabalho a viajantes especiais que ele quis se sentissem especiais. Foi o que nos aconteceu e é o que acontece a todos os que continuam a viajar com o
Guia de Portugal.
Essa dedicatória reza o seguinte: “A todos os que não desejam fazer perpetuamente justa a frase de Montesquieu, ao dizer dos portugueses que tinham descoberto o mundo, mas desconhecem a terra em que nasceram; este livro, inventário das riquezas artísticas que ainda se não sumiram na voragem, e das maravilhas naturais que ainda não conseguimos destruir, antologia de paisagistas, “vade-mecum” de beleza, roteiro dos passos dos portugueses enamorados, indículo das pequenas e grandes coisas, que requerem o nosso amor – pelo passado, pelo presente e pelo futuro –, é oferecido e dedicado"