De tanto olhar o tempo que corre como a água, Judt não deixou de ver o hoje desse rio de Heraclito em que nos banhamos. Os seus ensaios sobre a atualidade são de uma coragem sem recuo. Judeu e até sionista na sua adolescência, pôs depois em causa a política do Estado de Israel e fez críticas e propostas que lhe foram pagas com a moeda da inimizade e do insulto. Europeu, era agora muito crítico dos caminhos da Europa e dos sinais que os indicam. Inglês a viver em Nova Iorque, em cuja Universidade ensinava, condenou a invasão do Iraque e opôs-se à atitude guerreira e imperial da Administração americana. Historiador, achava que entrámos numa época perigosa de esquecimento da história e de amnésia do mal. Por tudo isto, a sua visão fez-se pessimista, depreciativa e desencantada. Mas, nele, o desencanto não tinha a voz da melancolia ou da desistência: era insolência, provocação e protesto. O seu último livro (Ill Fares the Land - "O Mal Ameaça a Terra") defende um regresso à grande tradição da social-democracia (a que pertence o socialismo democrático e o trabalhismo) e do Estado-Providência, aquela que, embora com falhas, melhor aliou os valores da liberdade e da igualdade. É um triste sinal do tempo a que chamamos nosso que tal defesa tenha sido olhada como um radicalismo suspeito. Estes têm sido os anos de um extremismo agressivo, ávido e vertiginoso, que fez do aumento da desigualdade, da desproteção e da exclusão uma virtude. Para o neoliberalismo fundado num determinismo economicista, tecnocrático, gestionário e messiânico, toda a ideia de 'social', mesmo a que se mostrou justa, moderada e eficaz, é tida como desvio ou ameaça. Isto por si prova a necessidade e o merecimento da proposta de Tony Judt. E é uma boa razão para persistirmos nela, dizendo com ele: "A social-democracia não representa um amanhã que canta nem um ontem que cantou. Mas, entre as opções políticas, é melhor do que qualquer outra ao nosso alcance."
De Pós-Guerra - Uma História da Europa depois de 1945 a O Século XX Esquecido - Lugares e Memórias, dos artigos sobre Koestler, Hannah Arendt e Camus à crónica a que chamou "Noite", na qual fala da doença e da morte que ela anunciava, estamos com um historiador-ensaísta que fez do mal uma das personagem da sua obra. Ao lê-lo, sinto proximidade. E, quando houve uma ou outra leitura feita na discordância, ou mesmo na discórdia, nunca foi inutilmente que a minha cabeça disse não ao que os meus olhos liam.
A morte de Judt acontece num tempo de todos os perigos para a Europa e para o Ocidente. Como disse recentemente, com um eterno cigarro na mão e uma grande clarividência nonagenária, o antigo chanceler alemão Helmut Schmidt (no seu tempo considerado um social-democrata de direita), para que o desastre no Ocidente seja perfeito só falta que, em 2012, os Estados Unidos juntem aos medíocres que governam a Europa a senhora Sarah Palin, trocando Obama por ela.
José Manuel dos Santos, colunista regular do "Atual"
Texto publicado na edição do Expresso de 21 de agosto de 2010.
Nota. Os tradutores deram à edição portuguesa do livro ll Fares the Land o título de Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos.
sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
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