Vou primeiro ao Baleal, que é a mais linda praia da terra portuguesa. Não passa duma grande rocha desligada da costa e fundeada a trezentos metros - mas esta rocha é uma ossada, e talvez o último vestígio da Atlântida, saindo do mar azul a escorrer azul, e presa à terra por um fio de areia que nas marés mais vivas chega a desaparecer. Deste ancoradouro, com uma baía ao sul formado pelo Carvoeiro, e com outro côncavo ao norte entre a rocha e a costa, vê-se o esplêndido panorama da terra, do mar e do céu. Vive-se extasiado e embebido em azul, no meio do mar azul, no meio do mar verde, no meio do mar dramático. Voga-se em toda a luz do céu e em toda a cor do mar. Dum lado, o areal em circo e aquele grande morro estendido pelo mar dentro; do outro, e até onde a vista alcança, todos os tons da costa, desde as labaredas das terras sulfurosas e as chapadas negras dos rochedos, com riscos de vermelho, até ao biombo que vai passando e desmaiando, primeiro roxo com aldeias ao sol e fundos verdes de pinheiros, depois transparente até atingir o indistinto e o diáfano numa última palpitação de claridade nebulosa. E tudo isto muda de cor e se transforma segundo as horas que passam. Há momentos em que é dourado, de manhã ou à hora do poente. Há outros em que me sinto abismado em azul e atascado em azul. O movimento das ondas esmorece e acalma. À volta só luz e cor. A costa some-se. Uma apoteose de ouro e verde lá no fundo. Do horizonte à praia corre cintila a esplêndida estrada do sol. E agora - reparem! Reparem! - o mar é verde e o céu perdeu a cor...
A acção das águas é incessante nestas velhas pedras carcomidas, onde meia dúzia de casas de pescadores se agarraram como lapas. A ressaca infiltra-se nos buracos, gasta-as e desgasta-as, até as reduzir a cárie, a penedos com baba, a ossadas pulverulentas, à petrificação da própria vaga quase a desabar. Há-as cor-de-giz, cortadas em fatias, dispostas umas sobre as outras, há-as amareladas como caveiras e formando praiazinhas enconchadas, de areia muito fina, onde até o mar se esquece e espraia adormecido.
Não vi árvores. Nasceu aqui uma figueira por acaso, que não podendo crescer, alargou a roda e tem um metro de altura. A única vegetação é a das ervas, a quem um pouco de terra basta para viver. São inúteis. São vidas humildes que a tudo se sujeitam e chegam a cumprir o seu destino à custa de sofrimento. Do meio da ilhota sai uma fraga mais saliente com a capelinha de Santo Estêvão no alto e a praia de batéis no fundo. Lá para diante outra rocha destacada, a ilha das Pombas, todo o dia salpicada de espuma.
Tudo isto perdido no azul ou assaltado pelas ondas coléricas. Os vagalhões avançam e despedaçam-se de encontro às pedras, que vomitam espuma e ficam a babar-se pelos buracos puídos. E outra - lá vem outra - incessantemente para o assalto! Algumas enormes varrem o extremo norte do Baleal numa cólera tremenda. As noites são profundas, admiráveis e cintilantes de pedraria - grandes como Deus.
Pesca quase não há. A pesca mudou-se para Peniche. O último batel chamava-se Santo Estêvão, tinha duas velas e levava redes de pescada e redes de lagosta. De cada rede era distribuído um quinhão para o homem, outro para o patrão e um quarto para a companha. Mas vêm aqui pescadores de fora. Um dia encontrei com alvoroço uma saveira encalhada no areal.
- Vocês donde são?
- Somos da Amurtosa.
Estes homens morenos e ágeis, da Murtosa, da Torreira e da Afurada, tenho-os encontrado com as suas saveiras em toda a costa norte até Lisboa. Encontrei-os em Peniche, na Caparica e em Sesimbra, onde lhes chamam ilhos, nos esbeltos barcos escuros, pescando a lagosta com os roscos; encontrei-os na Foz do Douro apanhando o mexoalho; ao arrasto do sável nos rios, e fisgando a solha ou a lampreia, que se apanha à noite com um candeio e um garfo atado num pau. A sua casa é o barco. Metem-se em todas as anfractuosidades da costa. Quando pressentem o temporal vão acolher-se a Peniche ou à Figueira. Andam sempre em famílias de três e quatro barcos. Acampam na areia, e com o mastro atravessado, uma panela e a lenha apanhada no mar e que desfazem em cavacos com a machadinha, traste indispensável em cada barco, acendem a fogueira como ciganos. Mas se o mar está manso e a noite é de luar, não vêm à terra. Largam a fateixa ou a poita e acendem o lume a bordo para a saborosa caldeirada. Sempre que via brilhar os fogaréus invejava profundamente aquela vida simples diante de Deus e do mar. Ao fim da pesca, que dura meses, e quando se anuncia o Inverno, recolhem à pressa as suas terras como aves emigradoras. Se o vento é de feição, em doze horas põem-se em Aveiro. Se é contrário, quando a vaga cresce e as gaivotas se metem grasnando pela terra dentro, arribam aqui e ali e levam dias a chegar a casa, onde passam com a mulheres e os filhos a época das rudes invernias.
Raúl Brandão, Os Pescadores. Cit. p. 123-125.
3 comentários:
Com estas palavras de Raul Brandão, contínuas passeando pelo Património, o Povo, o seu modo vida e a sua cultura, a nossa identidade humana...
João Ramos Franco
Uma descrição visível (que nos faz ver) por palavras. Coisa que vamos deixando de saber fazer talvez por o considerarmos desnecessário, agora que tão simplesmente podemos reproduzir o que vemos até com um simples telemóvel.
Textos como este tendem a rarear e daí o seu maior valor. Nem todos vemos do mesmo modo: qualquer dia a quem parecerá necessário descrever o que vê como o faz aqui Raul Brandão? Não é nenhuma tragádia, limita-se a ser assim: em cada coisa que se ganha há outra que se perde.
- Isabel X -
Que bela viagem, pela costa atlântica!
MV
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