1. Uma data singular: a revolução
No Portugal do século XX, o 25 de Abril foi o acontecimento mais importante. Podia ter originado uma alteração de regime político e arrastado mudanças na classe dirigente, podia ter introduzido novas expectativas sociais e criado condições para uma reorientação da economia. Foi tudo isso, que já é muito, mas foi muito mais do que isso. Implicou um corte profundo na história, uma verdadeira ruptura com o passado. E por isso foi uma data singular.
As rupturas históricas não são o mero resultado da vontade dos intervenientes, mas o produto de uma conjugação rara de factores, de uma sincronização de descontentamentos e de disponibilidade de meios para lhes dar voz e direcção. Foi o que sucedeu com o 25 de Abril de 1974.
Talvez pudéssemos resumir a quatro os elementos que confluem para o 25 de Abril. Em primeiro lugar, naturalmente, devemos pôr em destaque o movimento militar, conduzido com coragem e generosidade pelos capitães de Abril. Esse movimento começara por definir intenções do foro exclusivamente militar, mas rapidamente se apercebeu de que o regime da ditadura era surdo aos seus apelos, e que teria de ser derrubado pela força e substituído por um regime democrático que assegurasse a normalidade institucional no país.
Antes porém desse acto de insubordinação que foi absolutamente decisivo, está a Resistência, um somatório longo e persistente de vontades que se opuseram à ditadura, reclamando a liberdade. A história do Autoritarismo que regeu Portugal entre 1926 e 1974 foi percorrida, ininterruptamente, por gestos de insubmissão, protestos dos mais variados sectores sociais, a que a Ditadura respondeu com repressão violenta, prisão, eliminação física, discriminação, desterro, com fundamento em opinião ideológica e política. A resistência acumulada ao longo das quase cinco décadas anteriores não só conferiu legitimidade ao 25 de Abril de 1974, como manteve viva uma cultura da liberdade que foi fundamental para dar corpo ao regime construído em seguida. Este é o segundo elemento.
O terceiro é a questão colonial. O 25 de Abril está indissoluvelmente ligado a ela, e à guerra que, desde 1962, o Estado Autoritário levou a cabo em África. O prolongamento da guerra tornou o sacrifício imposto à juventude cada vez mais intolerável e foi engrossando a consciência pública da sua inutilidade. Mas o autoritarismo tinha associado de tal forma a sua continuidade à permanência das colónias que qualquer forma de relacionamento entre Portugal e os países africanos de língua portuguesa, baseada na autonomia e na cooperação, implicava forçosamente uma mudança de regime.
Finalmente, e em quarto lugar, há que referir o movimento popular que no próprio dia 25 de Abril e seguintes, por todo o Portugal, e de forma expontânea, saiu para a rua exprimindo apoio ao movimento dos capitães e exigindo a democratização da sociedade portuguesa. Esse movimento popular colocou de um modo ainda mal estruturado, mas vigoroso, a urgência de novas instituições políticas, e foi nesse contexto que se formaram os partidos políticos e se definiu uma matriz pluralista para a nova República.
Estes são os argumentos que invoco para falar de revolução a propósito do 25 de Abril.
2. Uma data histórica: um processo de mudança
A ruptura do 25 de Abril inscreve-se num ciclo de grandes transformações da sociedade portuguesa, e funciona como um acelerador da mudança. É possível destacar três níveis de mudança.
A mudança social foi um desses níveis. Os campos tinham começado a perder gente na década de 60 e a tendência para a diminuição da população rural e para o aumento percentual da população urbana acentuou-se nas últimas duas décadas. A urbanização trouxe uma diversificação social e um aumento do peso relativo das classes médias. As áreas de Lisboa e Porto foram as principais beneficiárias desse movimento populacional, e o interior o principal sacrificado, mas surgiram igualmente cidades médias com capacidade de atracção, sobretudo no sector dos serviços. Alteraram-se os padrões de consumo e muitos indicadores civilizacionais, desde o tipo de família à condição da mulher, desde a disseminação da informação à ocupação dos tempos livres.
Em paralelo com estas mudanças sociais, assistimos ao crescimento do conjunto dos sistemas sociais, funções modernas do Estado. Trata-se, entre outros, dos sistemas de ensino, de segurança social e de saúde. O Estado Providência deu os primeiros passos na década de 1960 e adquiriu contornos de sistema depois da revolução de 1974. O sistema nacional de saúde foi consagrado na Constituição de 1976. O ensino obrigatório que era de 4 anos em 1974, subiu para 9 em 1986. O número de alunos duplicou nas últimas quatro décadas. Só os estudantes do ensino superior decuplicaram no mesmo período (de 40000 para cerca de 400000).
Mudanças políticas estruturais situam-se a um terceiro nível. O 25 de Abril assegurou a refundação de um Estado de Direito baseado nas liberdades e garantias individuais, na divisão de poderes, na independência dos tribunais, na representação plural mediada pelos partidos políticos. Entre os aspectos que mais creditam a nova República da Democracia podemos citar o poder local e a integração europeia.
Os municípios constituem hoje a instância mais importante e generalizada da descentralização administrativa. Estiveram logo a seguir ao 25 de Abril na primeira linha do combate pelo desenvolvimento das comunidades. Dados os poderes que obtiveram e os meios que controlam, a sua influência na vida das populações e no ordenamento do território é hoje decisiva.
Portugal aderiu à Comunidade Europeia em 1986, um acto político que culminou uma aproximação de várias décadas. As instituições portuguesas adaptaram-se com relativa facilidade à nova ordem jurídica e aos processos de decisão comunitários. A economia portuguesa, uma economia muito aberta e que tinha já nos países europeus os principais parceiros, tem mantido uma capacidade de resposta interessante, e conseguiu cumprir os critérios da convergência monetária. A Europa constitui hoje um espaço de afirmação da identidade nacional e de projecção da cultura portuguesa.
3. Uma data mágica: de quantas vidas é feita a vida de um homem?
Suponho que a minha condição de historiador pesou no convite para participar nesta iniciativa. Procurei acima não desmerecer dessa condição, conhecendo embora não só as minhas próprias limitações, como a pouca distância a que nos encontramos de uma data que pretendemos avaliar historicamente.
Acontece, no entanto que sendo esta publicação norteada pelo objectivo de dar a palavra a quem, tendo nascido em 1974, perfaz agora 25 anos, eu me acho autorizado a prestar igualmente um testemunho pessoal. É que eu tinha exactamente 25 anos a 25 de Abril e acabo portanto de perfazer meio século. Uma vida cortada pelo meio a 25 de Abril de 1974.
Quero dizer então que o 25 de Abril representou o fim do medo, tanto do medo resultante das ameaças de perseguição e de repressão, como do medo resultante da distância a que sentia os meus compatriotas do desenvolvimento, da ciência, da cultura, dos factores da dignidade humana.
Para a minha geração o 25 de Abril foi um desafio sem medida, que aceitámos com a mesma generosidade com que tínhamos combatido a Ditadura, com o mesmo empenho com que tínhamos resistido à Ditadura, mas sobretudo com o gosto pelo sonho de quem subitamente acha tudo urgente e possível. Tive - tivemos - a experiência única de quem atravessa uma fronteira, a fronteira da Liberdade. Por isso afirmo que o 25 de Abril é uma data mágica.
Que é feito de muitos sonhos, agora que decorreram 25 anos? Do paradeiro de alguns, do destino de outros poderei falar com decepção e até desgosto. Mas posso continuar a sonhar, e esse é o legado inestimável do 25 de Abril. Valeu a pena!
[Texto publicado em 1999]
segunda-feira, 25 de abril de 2011
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