domingo, 14 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (3)

Foi precisamente a este expediente que recorri. Informei-me sobre o mercado local desses instrumentos de salvação e apresentei-me ao fornecedor na segunda-feira seguinte, munido do bilhete de identidade e da contrapartida monetária que me tinham indicado. Sobre o motivo da queixa, limitei-me a tossir e a declarar: gripe. À note telefonou-me, do Porto, o Artur. Uma peripécia mais ou menos rocambolesca retivera-o ali desde o final da semana anterior e não conseguiria regressar a Castelo Branco antes de um dia ou dois. Contei-lhe o que se passara e como corria o sério risco de faltas injustificadas. - Meu caro, tens que me ajudar, desencantando aí um atestado médico e entregando-o na secretaria do Liceu - foi a resposta.
A empresa era arriscada, mas não havia alternativa. No dia seguinte, lá subi as escadas do mesmo fornecedor e apresentei-me tossindo e alegando gripe. O seu nome? – foi-me perguntado. Debitei o nome completo do meu colega. Bilhete de Identidade? Esqueci-me, mas sei o número de cor. Pela primeira vez, o meu interlocutor olhou para mim, quase incrédulo. E também sabe a data de emissão? Sim – retorqui, e debitei-a.
Como se pode perceber deste abreviado relato memorialistico, não enfrentei dificuldades significativas de integração, tanto no quotidiano escolar como no meio local. Pouco tempo decorrido sobre o início do ano de 1971, adquirira um crescente à vontade na relação com alunos e colegas, conseguira dominar os problemas do irrequietismo adolescente nas turmas dos mais novos e afirmar um razoável domínio das matérias exigentes da leccionação aos mais velhos. De alguns colegas mais velhos, recebera mesmo manifestações de apreço e simpatia, e, à mediada que o tempo passava, o gelo inicial do próprio reitor por vezes parecia querer derreter.
Terminadas as aulas, os meus serviços podiam ser dispensados. Em princípio, os professores provisórios não faziam exames, limitando-se a colaborar em tarefas de vigilância nas provas escritas. A 7 de Julho, o mais tardar, perdiam o vínculo precário que os ligava ao Estado. Mas, em finais de Junho, Catanas Diogo chamou-me ao seu gabinete para me dizer que contava comigo para ver provas escritas e talvez fazer algumas orais, pelo que podia contar com trabalho (e remuneração) até ao fim do mês de Julho.
Assim sucedeu. Fiz vigilâncias de escritas em Castelo Branco e no colégio de Proença a Nova (onde cheguei no velho carro do velho professor de matemática Matos Dias que cortava as curvas a direito num exercício de improvável sucesso). Era uma prática corrente os professores de liceu irem fazer exames aos colégios da área (recordo de mais tarde, quando professor no Padre António Veira em Lisboa ir fazer exames aos colégios de São João de Brito e Padre Manuel Bernardes).
Uma tarde, regressado de prova orais em Castelo Branco, tinha na pensão uma mensagem inesperada: o Reitor telefonara a pedir que me fosse encontrar com ele à esplanada do café Avis. Tudo aquilo me pareceu estranho: o pedido, o local de encontro, vindo de alguém que eu nunca encontrara num café, sequer na rua.
Intrigado corri a confirmar a mensagem. E lá estava, na sua figura franzina e de outro tempo, o temido Catanas Diogo. A conversa foi tão inusitada que eu tive dificuldade em perceber exactamente do que se tratava. Mas entendi o que me pedia: que no dia seguinte, em vez das provas orais que me estavam destinadas em Castelo Branco, eu me deslocasse de manhã ao Fundão, para aí substituir um professor no júri das provas de Filosofia. Tratava-se de uma emergência. Embaraçado mas determinado, o reitor ainda disse: confio em si para esta missão. Na sua competência, no seu bom senso e na sua juventude. Eu ficarei atento e à mínima dificuldade, pode estar certo de que não deixarei de agir. Mas tenho a certeza de que vai conseguir dominar a situação.
À noite tomei conhecimento de qual ela era verdadeiramente. Nesse dia, o professor destacado para fazer as orais de filosofia no Fundão só aprovara um aluno. Indignados, os pais tinham invadido as instalações do colégio e durante algum tempo “sequestrado” o júri. Alegavam que as perguntas eram capciosas e destinadas a intimidar os jovens e não a descobrir o que sabiam. Só com a intervenção da GNR os professores tinham podido regressar a Castelo Branco.
Investido da missão apaziguadora que o reitor me confiara entrei no Colégio do Fundão, com os restantes membros do júri, apreensivo e circunspecto. O Director recebeu-nos à porta, mas não fez referencia aos acontecimentos da véspera. Junto dele, a filha, saudou-me com afectividade. Tinha sido minha colega na Faculdade. Este encontro aliviou a tensão.
O dia de exames decorreu sem incidentes. A sala estava cheia quando a sessão se iniciou e foi esvaziando ao longo da manhã, sinal de que a normalidade regressara às salas do Colégio. O Presidente do júri, um experiente professor de Geografia, fez questão, no regresso, de me deixar junto da Pensão Império. Catanas Diogo, nervoso, aguardava, ali mesmo, a nossa chegada para confirmar as boas notícias.

1 comentário:

Isabel X disse...

Conclusões:

1) Não só se podia obter atestado médico para justificar a falta dominical própria, como obter esse "instrumento se salvação" para quem precisava de ser salvo, assumindo identidade alheia;

2) O jovem professor, olhado com desconfiança pelo reitor no início do ano lectivo, acabou por ser quem o salvou da situação embaraçosa (e de um posível conflito) que lhe fora criada por um professor antigo.

3) O João deve ter feito muita falta em Castelo Branco.

- Isabel X -