Em Setembro de 1970, concluído o bacharelato em História na Faculdade de Letras de Lisboa, lancei-me à procura de emprego. Até aí tinha tido algumas ocupações e tarefas remuneradas – explicações, inquéritos, traduções – contributos significativos para fazer face às despesas de alojamento em Lisboa, mas agora era chegado o tempo do exercício de uma profissão. Havia o fascínio do jornalismo – que tentei, apresentando uma candidatura à Flama, à Vida Mundial e à Associated Press – e o ensino. Na Flama, o chefe de redacção, Beça Múrias mandou-me fazer, a título de experiência, uma reportagem sobre o rio Tejo, para a qual me senti miseravelmente impreparado. Na Vida Mundial ofereceram-me o estatuto que já tinha antes, o de tradutor de notícias de agencia. Na Associated Press propuseram-me o mesmo, depois de efectuar um teste bem sucedido, mas acenando-me com a possibilidade de passados os dois primeiros meses de adaptação, passar a ter responsabilidades redactoriais. Ainda aceitei esta oferta, mas entretanto chegou uma resposta do Ministério da Educação que me pareceu irresistível. Optei por ela, e nessa opção, sem o adivinhar na altura, foi uma vida profissional que se jogou.
De facto, eu tinha escrito uma carta referindo o facto de só ter obtido as habilitações mínimas para o ensino em Setembro e por isso não ter podido concorrer na época normal, e manifestando disponibilidade para leccionar um horário ainda não preenchido em liceus ou escolas preparatórias.
Recebi duas respostas positivas, das duas direcções-gerais do Ministério: do ciclo preparatório propondo-me um horário nas Caldas da Rainha; do ensino secundário, propondo-me um horário no Liceu Nacional de Castelo Branco. Foi esta que aceitei. A carta da Direcção Geral continha uma guia para levantar um bilhete de comboio Santa Apolónia – Castelo Branco e referia apenas que se tratava de um horário completo, ou seja 22 horas lectivas.
Castelo Branco não fazia parte do reduzido lote de cidades de que tinha conhecimento directo. Lembrava-me apenas que, em miúdo, visitara o Fundão e Alpedrinha, localidades do distrito de Castelo Branco, acompanhando uma viagem memorável do meu avô à terra onde vivera até aos dezoito anos.
Tomei o comboio no dia 12 de Dezembro, tendo em atenção que a carta indicava para apresentação o dia 14, uma Segunda-feira, caso estivesse interessado no lugar. O meu primeiro contacto com a linha da Beira foi elucidativo sobre a distancia a que doravante estaria dos amigos e companheiros de Lisboa. Cheguei ao destino mais de cinco horas depois.
Instalei-me na pensão “Caravela”, cujo letreiro me chamou a atenção numa das esquinas visíveis no jardim principal da cidade. No dia seguinte, procurei o Liceu e apresentei-me ao Reitor.
Catanas Diogo, assim se chamava o reitor do Liceu Nacional de Castelo Branco era uma figura magra, de modos rígidos e secos. Vestia de preto. Olhou para mim, por detrás dos óculos, estendeu-me a mão e logo a seguir uma grossa caderneta verde. Não escondeu a decepção que a minha presença lhe provocara. Comentou: “antigamente os professores apresentavam-se de gravata”. A camisola de gola alta, apropriada ao frio da época e da região, que eu envergava tomou-a como sinal de rebeldia. Fiquei calado. Quando começo? – perguntei. Amanhã – retorquiu, dando a conversa por encerrada.
De regresso ao quarto da pensão, avaliei pela primeira vez a extensão do desafio. O horário que me destinavam incluía duas turmas de 7º ano (ano terminal do secundário) de Filosofia, quatro turmas de 3º ano de História e duas turmas de Organização Politica e Administrativa da Nação de 6º ano. Fiquei literalmente atordoado. As turmas de história eram de miúdos de 12 e 13 anos e eu não tinha qualquer experiência de lidar com adolescentes. Mas o problema maior era sem dúvida o do ensino da Filosofia. A minha preparação nessa área era constituída exclusivamente pela minha própria passagem enquanto aluno pelo ensino liceal e a frequência de uma cadeira de Introdução à Filosofia no primeiro ano do Curso de História.
Enquanto as Faculdades de Letras tinham procedido no final da década de 50 à separação das licenciaturas de História e de Filosofia, no ensino secundário continuava a funcionar o grupo de histórico-filosóficas, independentemente da formação original dos professores.
O horário que me coubera tinha sido atribuído inicialmente à Professora Adelaide Salvado - entretanto chamada para estágio - deixara no liceu uma aura de competência profissional e científica. Só assim se explicava que lhe tivesse sido atribuída tarefa docente tão difícil: os anos iniciais do ensino da História e os anos terminais e de exame do ensino da Filosofia. Motivo suplementar, pois, de apreensão da minha parte.
No dia seguinte apresentei-me no Liceu para cumprir o horário. A minha predecessora já tinha indicado os manuais e dado alguma matéria. Limitei-me a reiterar as decisões anteriores e averiguar a que ponto da matéria os alunos haviam chegado. As aulas do primeiro período escolar estavam prestes a terminar. Os conselhos de turmas que se realizariam de seguida para dar as notas estavam autorizados a não atribuir qualquer classificação aos alunos que tinham transitado da Professora Adelaide Salvado para mim. Sosseguei os estudantes quanto a esse facto, mas preveni-os de que estávamos obrigados a cumprir todo o programa e de que a nota final seria calculada pela média dos dois períodos seguintes.
Percebi e sensação que a minha chegada causara. Nos meus 21 anos, eu era o professor mais jovem de todo o Liceu, cujo corpo docente era maioritariamente constituído por professores possuidores da larga experiência de muitos anos de carreira. Descobri entre os meus colegas dois com os quais, embora mais velhos, podia partilhar alguma juventude e a condição de forasteiro: um professor de História, Joaquim Artur Marques de Carvalho, e outro de Filosofia, António Melo, ambos do Porto.
As férias de Natal iniciar-se-iam dali a poucos dias. Tomei parte nos conselhos de turma, averiguei as condições logísticas com vista a uma instalação futura menos precária e participei num jantar para que fui convidado a fim de conhecer um poeta neo-realista que na altura se encontrava em Castelo Branco, José Ferreira Monte (pseudónimo de José Ferreira Moreira da Câmara, nascido em 1922 e falecido em 1985)).
A 18 de Dezembro parti de Castelo Branco para Lisboa, disposto a adquirir bibliografia e preparar aulas para enfrentar a tarefa cuja dimensão me pareceu excessiva.
Na bagagem trazia agora uma prenda de natal para o meu Avô e para o meu Pai. Não tinha dúvidas de que seria bem apreciada: um queijo da Serra. Pequeno é certo – até onde o meu magro orçamento podia chegar – mas o mais apreciado e lembrado produto de quem ali nascera, entre as Serras da Gardunha e da Estrela.
sábado, 6 de novembro de 2010
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3 comentários:
Um texto muito bonito. Um retalho de vida. Mostra-nos como era diferente o nosso Portugal, como era diferente a escola, como eram diferentes as relações profissionais, e como eram diferentes os jovens de 21 anos de idade.
Tudo era diferente... e eu hoje estou zangado...!
Muito interessante o testemunho que o João aqui presta. Pela descrição do seu percurso individual vamos conhecendo as condições da época, as difíceis circunstâncias que aguardavam um jovem com habilitações (consideradas) próprias para o ensino, quando ingressava no sistema educativo.
Nota-se a vontade de independência do protagonista, mas também o orgulho de poder regressar a casa com um presente adquirido com dinheiro próprio, para presentear os familiares de quem se afastara para garantir a ansiada autonomia.
É uma bela história. Dá-nos conta de uma vontade forte e inesperada em alguém tão novo. Mas dá-nos conta também das diferenças (de mobilidade, de distância, de ingresso no mundo do trabalho, de relações familiares) do Portugal dos anos 70 do século XX e da primeira década do século XXI. Quanta mudança...
Sou professora e, apesar de "tudo" o que se passa na educação, penso que estamos bastante melhor do que nesse tempo. Sem dúvida.
E as mudanças na vida do protagonista desta história?
Quantos outros episódios se integrarão de modo interessante nas vissicitudes da nossa vida colectiva?
Ficamos à espera, João...
- Isabel X -
Muito agradável, prof Serra; memória que convida à partilha de viagem num texto muito limpo.
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