terça-feira, 30 de novembro de 2010

Apesar da chuva

Lá está, deste esta madrugada, o pinheiro 2010. A força requerida para encher a cidade do toque nicolino, em noite de chuva intensa e ininterrupta, rompeu a pele esticada de muitas caixas e bombos.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

"...não virá o Presidente da República"

Em 1974, a Fábrica de Porcelana Vista Alegre perfazia 150 anos. Tocado pelo significado da data e da sua projecção comemorativa, o Director fabril, Engº Alberto Faria Frasco decidiu escrever um diário. Não podia adivinhar que acontecimentos históricos para o País se viriam a repercutir na vida da empresa e no próprio curso das celebrações.
Por iniciativa das filhas do Autor, esse diário foi agora editado, vindo a lume no dia em que no Museu Albert Sampaio foi inaugurada uma exposição de porcelanas da colecção do próprio Faria Frasco.

2 de Maio [1974]
Retomou o serviço o Encarregado da Lambugem doméstica. Esteve dois dias ausente e os resultados pioraram consideravelmente. Vamos ver se ele consegue repor a qualidade ao nível do que desejamos. Para já há que actuar no fabrico de travessas cuja qualidade tem deixado muito a desejar.
Também retomou o serviço a telefonista Preciosa, há meses internada num hospital de Lisboa. Ainda não está boa e receio bem que venha a recuperar. Dada a sua dificuldade de locomoção, autorizei que entre e saia pela portão principal para evitar o longo trajecto pelo interior da Fábrica.
Saiu hoje do forno a primeira amostra da “renovada” placa comemorativa dos 150 anos da Fábrica. Perfeita. Não saiu assinada pois sendo a composição de Leonel Cardoso e a execução de Carlos Calixto, pensei que o melhor era não aparecer nenhuma assinatura ou então aparecerem as duas. A placa seguiu para Lisboa para decisão da Administração quanto ao problema da assinatura.
Aprovei hoje a decoração para a louça que vai servir no almoço dos 150 anos. É simples, bonita e cheia de significado.
A talha 150 especialmente concebida para os sócios está em execução na olaria. Espero ter amostra na próxima semana.
Fiquei francamente surpreendido com o telefonema hoje recebido do Eng. José Pinto Basto, transmitindo-me a ideia da Administração quanto a alteração do programa comemorativo dos 150 anos, porque não virá o presidente da República! É espantoso como se pode pensar em alterar um programa de uma festa da gente da Fábrica por causa de uma pessoa! É evidente que discordei totalmente e penso que o bom senso prevalecerá e nada será alterado. Pelo menos assim o creio...
Seguiu hoje para Lisboa o relatório a apresentar à Cidla, reclamando quanto aos maus resultados devido à deficiente qualidade do gás e quanto ao preço, pois é inadmissível que o butano custe o mesmo que o propano quando, do ponto de vista calórico, é menos valioso.
Continuamos a ter dificuldades com a exportação. Além do atraso de um embarque é provável que outros se sigam pois, segundo me informou Lisboa, na Alfândega as caixas são revistadas para evitarem possíveis fugas de valores para o estrangeiro. A situação é tão grave que temos um embalador na Alfândega para desembalar e voltar a embalar todas as caixas que pretendem abrir. Compreendo a decisão, mas quem sofre somos nós que não enviamos outros valores que não sejam as nossas próprias peças...
Recebi pessoal. Destaco uma enorme quantidade de vidradores e enfornadores que vieram falar comigo por causa de um prémio que, segundo me disseram, tem baixado quando deveria subir. Prometi averiguar e logo que o assunto esteja estudado chamá-los-ei novamente para, democraticamente, discutirmos o assunto. Tudo se passou, como habitualmente, dentro do maior respeito e da melhor compreensão.

Alberto Faria Frasco, Vista Alegre. Diário 1974. Famalicão, Ed. Autor, 2010. p. 63-64.

domingo, 28 de novembro de 2010

Colecção do Engª Faria Frasco

Apresentação e inauguração ontem, no Museu Alberto Sampaio, da exposição de porcelanas da Vista Alegre da excelente colecção do antigo Director da Fábrica, Engº Faria Frasco.



sábado, 27 de novembro de 2010

À janela de Sir Alfred Munnings (1878-1959)

Alfred Munnings, From my bedroom window, 1930

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Rústica, vigorosa, tenaz mas sóbria.

Entre as plantas trepadeiras é a videira uma das mais rústicas e vigorosas, cujos ramos, abandonados à sua índole vagabunda e expansiva, se estendem pela terra a grande distancia, ou trepam pelos rochedos, e sobem as mais altas árvores, elevando-se até lhes dominarem a copa, e debruçando-se nelas, as envolveram por todos os lados. Assim como é prodigioso o desenvolvimento dos seus ramos, também as suas raízes penetram até grandes profundidades, insinuando-se através do subsolo pelas fendas das rochas subjacentes. A sua vitalidade é por tal forma tenaz, que basta plantar uma pequena parte de um dos seus ramos, ainda muitos dias depois de cortada, contanto que nela exista um gomo, para que lance raízes e reproduza a planta donde proveio. Ao mesmo tempo é excessivamente sóbria; pois que pode viver e frutificar nos terrenos mais pobres, em que definham e morrem por falta de alimento a maior parte das plantas, que cultivamos para os nossos usos.
Quanto mais livremente cresce, mais tempo vive, mais abundantemente frutifica, do que temos numerosos exemplos nas videiras que se educam para vestir as ramadas ou trepar às árvores. Porém, se é muito produtiva a videira, quando, crescendo livremente, tomam os seus ramos grande desenvolvimento, em compensação os frutos, que nestas condições produz, não gozam daquelas qualidades que tornam apreciáveis para a fabricação do vinho as uvas criadas em vinha baixa. É por esta razão principalmente que a arte do viticultor intervém para restringir e dominar pela poda o crescimento natural da videira, melhorando a qualidade dos seus produtos.

Visconde de Vila Maior, Manual de Viticultura Prática. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1875. p. 40-41.
Vinhedo em Sendim, Miranda do Douro

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Recalculando

Pedindo de empréstimo o gerúndio mais usado pela voz do gps:

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Presidenciais, presidenciáveis

Como acontece sempre que entro nesse domínio do insondável, onde se justapõem desejos e previsões, equivoquei-me. Sempre antecipei que o Professor Cavaco Silva não se candidataria a 2º mandato, pelo excelente mas inconfessável motivo de que não dispensava o espectáculo de ver o Professor Marcelo Rebelo de Sousa em campanha por Belém.
Vejo agora que este meu antigo colega de 1º ano de Direito admite candidatar-se à Presidência da República daqui a 5 anos. Se estiverem reunidas as condições, claro. Entretanto, ainda na mesma semana, confessou que achava a vida de Presidente uma seca. Esta condicionante parece ser difícil alterar em 5 anos. A ver vamos... Ainda falta tanto tempo!

terça-feira, 23 de novembro de 2010

A japoneira do "meu" jardim

Pormenor (primeiras flores)

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (6)

Antes de sair de Castelo Branco, resolvi despedir-me do Reitor. Mau grado a frieza quase hostil com que me recebera e o incidente gerado com a tentativa de forçar todo o corpo docente a comparecer perante o Presidente da República, as nossas relações tinham-se amenizado no final do ano. Foi uma despedida cordial, em que trocámos até algumas graças. Quando me preparava para sair do seu gabinete, interpelou-me: - tem perspectivas de colocação em Lisboa? -  Não estou certo, respondi. - Terá sempre aqui um lugar, se as coisas por qualquer motivo não lhe correrem bem, disse então. Fiquei surpreendido e agradado.
Mas eu queria muito voltar a Lisboa. A distancia a que ficava de Castelo Branco era terrível. Saindo desta cidade no Sábado por volta das 12h30 (tinha aulas ao Sábado de manhã), chegava a Santa Apolónia ao fim da tarde. Regressava no dia seguinte, Domingo, saindo de Santa Apolónia por volta das 21 e chegando a Castelo Branco já de madrugada. Duas viagens longas e incómodas, e de duração sempre imprevisível, que deixavam entre si pouco mais de 24 horas. Tempo insuficiente para manter relacionamentos intelectuais e afectivos, viver a cidade de que gostava, ir às livrarias e aos cafés, ao teatro, ao cinema, a exposições, deambular pelas ruas. Tinha ainda que concluir o 4º ano do Curso, sem o que não me poderia inscrever no seminário que dava acesso à elaboração da tese e conclusão da licenciatura, daí resultando mais constrangimento aos meus tempos livres.
Com a criação dos bacharelatos decidida em 1968 pelo Ministro José Hermano Saraiva, todos os que, como, eu tinham concluído o 2º ano do Curso, ficaram na insólita situação de terem já efectuado cadeiras que passaram a pertencer aos planos de estudos do 4º ano. Assim sendo, eu pudera inscrever-me em 1970/1971 em salvo erro apenas duas cadeiras, Numismática e Paleografia e Diplomática, as quais frequentei no regime de voluntário, uma vez que não podia assistir às aulas. Devo dizer que a inscrição era fundamental também por um motivo crucial: obter o adiamento militar concedido a quem provasse encontrar-se a frequentar um curso superior nos cinco anos posteriores ao ano que perfizera 20 anos.
Os meses em que permaneci em Castelo Branco foram, nestas condições, devastadores para o meu círculo de amigos e de solidariedades pessoais e intelectuais. A distância interrompeu abruptamente relações que não mais foram reatadas, cortou laços e desvaneceu memórias intensas e fortes de camaradagem e partilha.
Em Lisboa, o mês de Agosto de 1971, pareceu-me mais deserto do que nunca. Ocupado em equipar a casa que com L. tinha alugado, não fui sequer às Caldas passar mais do que um fugaz fim de semana. Sem saber se e quando teria colocação, a gestão do pequeno pecúlio amealhado em Castelo Branco impunha uma severa restrição de gastos quotidianos. Voltei às traduções, com a ajuda do António Reis que procurei no Barreiro. Mas, curiosamente, a hipótese do jornalismo que tanto me atraíra um ano antes, nem sequer se colocou. A experiência de Castelo Branco fez-me reconhecer que ensinar era verdadeiramente o que eu queria fazer. Esperaria por isso que as colocações me ditassem onde o poderia fazer. Em Setembro, recebi a resposta: teria um horário na Escola Preparatória Manuel da Maia, em Campo de Ourique. Apresentei-me e comecei de imediato a preparar e dar aulas. E uma semana depois, tal como em Dezembro do ano anterior, chegou-me outro horário. Desta vez, no Liceu do Padre António Vieira, em Alvalade.

domingo, 21 de novembro de 2010

De Lisboa a Guimarães em 1825

Roteiro de Lisboa à villa de Guimarães
[Op. cit. p. 141-143]

sábado, 20 de novembro de 2010

"Como é que o cônsul aprendeu tão excelente inglês?"

Pittsburgh
29 de Maio, 1873


Meu querido amigo
Recebi a sua bem-vinda carta esta manhã e quando reconheci a letra tremi e empalideci pois nunca esperei voltar a saber de si.
Estive à espera tão ansiosamente por notícias suas e cheguei à conclusão que voltara para a Europa e de que nunca mais o veria. Querido, a sua carta é um raio de felicidade na minha vida; que feliz estou esta noite por saber que está nos Estados Unidos e não nessa desagradável Havana. Imaginei-o com febres, com tudo de pior. Na verdade estive sempre doente desde que deixei Havana e não pode agora dizer que tenho bom ar porque estou magra e com péssimo aspecto.
Sobre a sua vinda a Pittsburgh: claro que virá e de depressa também, querido, porque até lá sentir-me-ei quase louca. Quando vier terá que tomar um coche porque os transportes públicos estão interrompidos pelo arranjo das vias mas terá de mencionar ao condutor os Bidwells, em Oakland, ou irá certamente parar aos meus tios.
Que feliz me sentirei por vê-lo uma destas tardes pelas 2 horas, meu querido, não posso esperar e seria melhor não vir demasiado cedo pois isso não agradaria à Mamã e ao Papá, mas tenho que lhe contar o que eles disseram da sua carta. Depois de a ter lido, levei-a ao quarto do Papá e disse-lhe que tinha uma carta muito simpática de um amigo e que gostaria que ele a lesse à Mamã. Leu-a e disseram ambos que era uma carta estupenda. Mollie, como é que o cônsul aprendeu tão excelente inglês? E como é que foi querido? Deve ter feito progressos desde que chegou a Nova Iorque porque não fazia ideia que pudesse escrever um inglês tão bom: esteve este Inverno numa boa escola.
Quando chegar não diga a ninguém que eu escrevi esta carta, porque embora o Papá não o tivesse proibido, sei que ele preferia que eu não a tivesse escrito.
Agrada-me saber que está contente com o nosso país, custa-me a crer que gosta dele como diz, mas pode dizer-me tudo o que pensa dos bárbaros quando nos encontrarmos.
Espero que desculpe esta escrita já que escrevi à pressa, por ser tarde.
Meu querido, devo dizer-lhe adeus até o ver, o que espero não demore muito.
Penso que agora me sentirei melhor, porque me afligi continuamente consigo. Graças a Deus está completamente a salvo desse mar medonho e estará dentro em pouco comigo. Que felicidade!
Sempre sua
M.

Cartas de Amor de Anna Conover e Mollie Bidwell para José Maria Eça de Queiroz, cônsul de Portugal em Havana (1873-1874). Lisboa, Assírio & Alvim, 1998. P. 80-81.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Ontem, no Guimarães Jazz

Casa esgotada para ouvir Charles Lloyd Quartet

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (5)

Tive contactos esporádicos e superficiais com o círculo político oposicionista de Castelo Branco. Não posso por isso tentar caracterizá-lo. Provavelmente estaria centrado em torno das figuras da CDE, que organizara listas no ano anterior ao da minha chegada a Castelo Branco. O apelido Paulouro era uma referencia regional. Eu tinha conhecido na Faculdade de Direito, em 1967, um dos membros da família e conhecia de nome o director do Jornal do Fundão, um dos mais conhecidos jornais locais da época. Mas não me lembro de ter falado com nenhum Paulouro em 70/71. Falei uma ou duas vezes com Manuel João Vieira, que integrara as listas CDE de 1969. E conheci aquela que talvez fosse a figura tutelar da CDE de então, o Dr. Vasco Luís Silva, que veio a ser Governador Civil do Distrito a seguir ao 25 de Abril. Como muitos professores que tinham sido proibidos de leccionar, dava explicações. Penso que tinha ligações ao sector intelectual do PCP, sendo sem dúvida um membro convicto da cultura neo-realista. Era um homem de modos sóbrios, que arrastava uma espécie de tristeza no olhar, onde podia ser antecipada o drama que se abateria brutalmente sobre os seus dias.
A minha condição de professor de passagem por Castelo Branco – nunca escondi a minha intenção de encontrar, se possível já no ano lectivo seguinte, colocação mais próxima de Lisboa – não favorecia o estabelecimento de relacionamentos mais sólidos no meio local. Eu viera de fora e nada fazia para modificar essa situação. Por outro lado, não me revia comummente nos temas políticos e culturais do neo-realismo, dos quais divergira no decurso das opções que fora efectuando entre 1966 e 1969, entre a minha entrada na Faculdade Direito de Lisboa e a conclusão do bacharelato em História. Ou seja,entre a declaração de Lennon "We're more popular than Jesus now" (1966) e a entrada dos tanques soviéticos em Praga (1969).
Entre os alunos, com um grupo heterogéneo estabeleci, como já referi, um relacionamento mais regular. Evitei cuidadosamente que o facto pudesse ter consequências objectivas ou subjectivas na relação professor-aluno. O certo é que não podia deixar de reconstituir em Castelo Branco um grupo de solidariedade e cumplicidade como sempre tinha acontecido desde que deixara a minha longínqua e isolada escolaridade aldeã, no final da década de 50.
Formado por rapazes e algumas raparigas das turmas do 7º Ano que leccionava, que fazia a cumplicidade deste grupo? A partilha de alguma preocupações enunciadas em termos geralmente um pouco vagos sobre o futuro de Portugal apanhado numa ratoeira entre a modernidade e a guerra colonial. Mas o que sobretudo unia este grupo era o gosto genuíno pelo jogo: jogávamos futebol, pingue-pongue, matraquilhos e monopólio, à mímica. Ocasiões de encontro, de disputa, de anotação cuidadosa de aperfeiçoamentos, numa busca individual de superação. Mais do que a vitória individual ou colectiva, o objectivo do jogo era a partilha dos tempos, a convivência e essa juvenil procura da melhoria performativa.
No grupo de alunos sobressaía o Luís Silva. Era simultaneamente o mais maduro e o mais entusiasta. Parecia dotado de uma curiosidade insaciável. Era um rapaz bonito, de cabelo negro comprido e encaracolado. Sem dúvidas um dos melhores alunos do Liceu, era, além disso, dotado de uma energia transbordante e de uma crença inabalável no valor das ideias como condutoras da acção. Filho único do Dr. Vasco Silva certamente dele recebia exemplo e inspiração. O meu relacionamento intelectual com o Luís Silva foi mais longe do que com os outros, levando-o a expor-me dúvidas e inquietações que outros não formulavam ou não me confidenciavam e que ele próprio talvez não partilhasse com outros amigos.
No final do ano lectivo, o tempo das despedidas foi alegre. Quase todos iam prosseguir os estudos, em Coimbra ou em Lisboa e julgo que encaravam esse facto com mais ânimo ainda depois de terem privado com um professor que fizera recentemente esse mesmo percurso. Eu regressava a Lisboa, agora com outro quadro de vida e disposto a retomar os estudos para conclusão da licenciatura.
Trocámos telefones, dei-lhes o endereço da casa que alugara em Lisboa e combinámos encontros.
Nos primeiros dias de Novembro de 1971, pelo fim da tarde, um desses meus ex-alunos telefonou-me a dar a notícia. O Luís Silva, agora aluno do primeiro ano do Instituto Superior Técnico, falecera durante a noite. Uma deficiência de coração nunca detectada cortara-lhe a vida em pleno sono.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (4)

Dos setes meses que permaneci em Castelo Branco, em 1971, poucas lembranças conservo dos seus arredores. Além das idas aos colégios de Proença-a-Nova e Fundão, por altura dos exames, creio que visitei Penha Garcia, Idanha-a-Nova e Monsanto, Almortão, Vila Velha de Ródão e as margens do Ponsul. O facto de não ter carro limitava-me a mobilidade e as frequentes vindas a Lisboa, aos fins de semana, inutilizavam essa oportunidade para reconhecimento turístico do espaço geográfico envolvente.
A visita a Monsanto e Idanha e sobretudo a Penha Garcia foi-me proporcionada pelo prof. Guimarães (não me lembro do nome), um professor de Geografia que acabava de se efectivar em Castelo Branco. Organizava visitas de estudo com os seus alunos e eu inscrevi-me numa. Eram visitas muito bem preparadas, com textos de apoio e orientação no terreno. Impressionou-me a ancestralidade e rudeza das construções e a estratificação geológica muito marcada na paisagem. À ermida da Senhora do Almortão fui também em expedição pedagógica, da responsabilidade do professor de Canto Coral (como então se designava a disciplina de Educação Musical), Carlos Gama. Fomos em dia de ensaio para a romaria (que se realiza duas semanas depois da Páscoa), para ouvirmos os cantares e o toque dos adufes, manejados por mulheres beirãs trigueiras e com os dedos tolhidos por atroses.
O professor Carlos Gama, além de dirigir diversos grupos de canto e música na cidade (o Orfeón de Castelo Branco e a Orquestra Típica Albicastrense), promovia e apreciava o convívio com os colegas do Liceu. Os seus interesse porém não se cingiam à música. Gostava de pescar e era um bom apreciador de gastronomia tradicional. Também apreciava as paisagens surpreendentes da região, nomeadamente as do leito e margens do Rio Ponsul, de facto uma das mais extraordinárias daquele território.
Com o Professor Guimarães eu tivera já uma visita guiada pelo leito do Ponsul junto a Penha Garcia. O Professor Gama levou-me aos sectores localizados junto do ponto de encontro com o Tejo, perto de Vila Velha de Ródão. Nas tardes de Sábado, essas excursões tinham um final feliz gastronómico. Num barracão aquecido por uma lareira, nas traseiras de uma taberna de beira de estrada, o Professor Gama agenciava um jantar que envolvia obrigatoriamente uma sopa de peixe de rio confeccionada na hora e com o peixe pescado entre o momento da nossa chegada e o fim dos aperitivos (queijo, chouriço, pão e vinho) e um coelho à caçadora acompanhado de batata cozida.
Das experiências gastronómicas da época, além dessa sopa de peixe feita com fatias de pão de trigo de véspera, caldo condimentado de cozer os peixes e ovo escalfado, a mais marcante foi a da lampreia. Comi pela primeira vez lampreia na Pensão Império, onde, como já referi, a comida era bem confeccionada. A lampreia era um prato dos meses da Primavera e preparado aos fins de semana. Alguns dos meus colegas desdenhavam a lampreia do Tejo, exaltando a do Minho, mas para mim, que desconhecia por completo a existência daquela prato, declarei-me rendido desde a primeira experiência. A cozinha mais afamada de lampreia na altura situava-se em Vila Velha de Ródão.
A gastronomia do interior beirão colocou-me em presença de alternativas ao peixe de mar. Além dos pequenos peixes de rio, a boga, o achigã, e da lampreia, um peixe entrou também pela primeira vez na minha ementa: o sável.
O sável acompanhava a época da lampreia e surgia na mesa sobretudo na forma de delgadas postas fritas e conservadas em molho de escabeche. Tapear, a meio da tarde, era um dos hábitos albicastrenses. Nos cafés e pensões, serviam-se pratos com queijos e enchidos, lulas fritas e pão. No tempo do sável, este destronava os concorrentes anteriores. A pequena refeição era acompanhada por uma garrafa de vinho. Na época, a relação qualidade-preço pendia a favor do Covilhã 1967 (um vinho da Adega Cooperativa da Covilhã, que, creio, se denomina hoje Piornos).

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Palavras a menos

Há palavras a mais na vida pública portuguesa, disse o Presidente.
Mas o principal problema não é verdadeiramente esse. O que há é convicção a menos, gente que fala todos os dias mas que não transmite um corpo de princípios, uma ideia orientadora face à qual os cidadãos se determinem. Perante a anomia da vida publica, há vozearia onde faria sentido a palavra que transmite confiança e exalta a união e o sentido da responsabilidade. Fazem falta palavras. Palavras de quem esteja próximo, de quem veja a floresta para lá da árvore, de quem se ocupe do sentido das coisas e não das coisas sem sentido.

"Será conveniente alguma humildade"

Se hoje os jovens não sabem o que fazer, não é por falta de objectivos. Qualquer conversa com estudantes mais velhos ou com crianças de escola revela um rol de ansiedades assustador. Na verdade, a nova geração está vivamente preocupada com o mundo que vai herdar. Mas o que acompanha esses medos é um sentimento geral de frustração: nós sabemos que algo está mal e há muita coisa de que não gostamos. Mas no que é que podemos acreditar? O que deveríamos fazer?
É uma reviravolta irónica das atitudes de outra época. Na era dos dogmas radicais confiantes, os jovens não tinham muitas incertezas. O tom característico dos anos 60 era de presunção: nós sabíamos mesmo como consertar o mundo. Esta nota de arrogância sem mérito foi em parte responsável pelo contra-ataque reaccionário que se seguiu; se a esquerda quiser recuperar o seu destino, será conveniente alguma humildade. Mesmo assim, quando se quer resolver um problema é preciso ser capaz de o nomear.

Tony Judt, Um Tratado Sobre os Nossos Actuais Descontentamentos.Lisboa, Edições 70, 2010. p. 19

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Ferreira da Silva, 2010

Frente (diam. 50 cm):

Verso:

Legado histórico

À noção de legado está associado o princípio do bem – material – que é transmitido de pais para filhos, de uma geração mais velha a uma geração mais nova. Pedida de empréstimo pelos grandes sistemas de produção do simbólico, a noção passou a abarcar o bem imaterial (legado histórico). Mais do que um legado estritamente patrimonial, o legado histórico é cultural. Neste caso, estamos a falar de património cultural ou imaterial.
O primeiro aspecto a destacar é que o legado histórico não é imutável e não é determinado só por quem originalmente o produz. O legado é essencialmente o resultado de uma apropriação – e uma apropriação colectiva e não individual, ou seja que não resulta do somatório das apropriações individuais. O património histórico só o é verdadeiramente quando os herdeiros o reconhecem como tal e de alguma forma o integram na história que eles próprios constroem. Cada geração selecciona e conserva do passado aquilo que considera determinante e face ao qual se posiciona.
Isto significa que o legado não é apenas constituído pelas ideias, símbolos, práticas anteriores que valorizamos positivamente e que queremos continuar, mas também por aqueles que valorizamos negativamente e queremos ultrapassar, evitar, corrigir ou mesmo a que queremos contrapor a diferença ou a alternativa.
O legado é compósito, plural, contraditório e não unitário, determinista e intocável.

domingo, 14 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (3)

Foi precisamente a este expediente que recorri. Informei-me sobre o mercado local desses instrumentos de salvação e apresentei-me ao fornecedor na segunda-feira seguinte, munido do bilhete de identidade e da contrapartida monetária que me tinham indicado. Sobre o motivo da queixa, limitei-me a tossir e a declarar: gripe. À note telefonou-me, do Porto, o Artur. Uma peripécia mais ou menos rocambolesca retivera-o ali desde o final da semana anterior e não conseguiria regressar a Castelo Branco antes de um dia ou dois. Contei-lhe o que se passara e como corria o sério risco de faltas injustificadas. - Meu caro, tens que me ajudar, desencantando aí um atestado médico e entregando-o na secretaria do Liceu - foi a resposta.
A empresa era arriscada, mas não havia alternativa. No dia seguinte, lá subi as escadas do mesmo fornecedor e apresentei-me tossindo e alegando gripe. O seu nome? – foi-me perguntado. Debitei o nome completo do meu colega. Bilhete de Identidade? Esqueci-me, mas sei o número de cor. Pela primeira vez, o meu interlocutor olhou para mim, quase incrédulo. E também sabe a data de emissão? Sim – retorqui, e debitei-a.
Como se pode perceber deste abreviado relato memorialistico, não enfrentei dificuldades significativas de integração, tanto no quotidiano escolar como no meio local. Pouco tempo decorrido sobre o início do ano de 1971, adquirira um crescente à vontade na relação com alunos e colegas, conseguira dominar os problemas do irrequietismo adolescente nas turmas dos mais novos e afirmar um razoável domínio das matérias exigentes da leccionação aos mais velhos. De alguns colegas mais velhos, recebera mesmo manifestações de apreço e simpatia, e, à mediada que o tempo passava, o gelo inicial do próprio reitor por vezes parecia querer derreter.
Terminadas as aulas, os meus serviços podiam ser dispensados. Em princípio, os professores provisórios não faziam exames, limitando-se a colaborar em tarefas de vigilância nas provas escritas. A 7 de Julho, o mais tardar, perdiam o vínculo precário que os ligava ao Estado. Mas, em finais de Junho, Catanas Diogo chamou-me ao seu gabinete para me dizer que contava comigo para ver provas escritas e talvez fazer algumas orais, pelo que podia contar com trabalho (e remuneração) até ao fim do mês de Julho.
Assim sucedeu. Fiz vigilâncias de escritas em Castelo Branco e no colégio de Proença a Nova (onde cheguei no velho carro do velho professor de matemática Matos Dias que cortava as curvas a direito num exercício de improvável sucesso). Era uma prática corrente os professores de liceu irem fazer exames aos colégios da área (recordo de mais tarde, quando professor no Padre António Veira em Lisboa ir fazer exames aos colégios de São João de Brito e Padre Manuel Bernardes).
Uma tarde, regressado de prova orais em Castelo Branco, tinha na pensão uma mensagem inesperada: o Reitor telefonara a pedir que me fosse encontrar com ele à esplanada do café Avis. Tudo aquilo me pareceu estranho: o pedido, o local de encontro, vindo de alguém que eu nunca encontrara num café, sequer na rua.
Intrigado corri a confirmar a mensagem. E lá estava, na sua figura franzina e de outro tempo, o temido Catanas Diogo. A conversa foi tão inusitada que eu tive dificuldade em perceber exactamente do que se tratava. Mas entendi o que me pedia: que no dia seguinte, em vez das provas orais que me estavam destinadas em Castelo Branco, eu me deslocasse de manhã ao Fundão, para aí substituir um professor no júri das provas de Filosofia. Tratava-se de uma emergência. Embaraçado mas determinado, o reitor ainda disse: confio em si para esta missão. Na sua competência, no seu bom senso e na sua juventude. Eu ficarei atento e à mínima dificuldade, pode estar certo de que não deixarei de agir. Mas tenho a certeza de que vai conseguir dominar a situação.
À noite tomei conhecimento de qual ela era verdadeiramente. Nesse dia, o professor destacado para fazer as orais de filosofia no Fundão só aprovara um aluno. Indignados, os pais tinham invadido as instalações do colégio e durante algum tempo “sequestrado” o júri. Alegavam que as perguntas eram capciosas e destinadas a intimidar os jovens e não a descobrir o que sabiam. Só com a intervenção da GNR os professores tinham podido regressar a Castelo Branco.
Investido da missão apaziguadora que o reitor me confiara entrei no Colégio do Fundão, com os restantes membros do júri, apreensivo e circunspecto. O Director recebeu-nos à porta, mas não fez referencia aos acontecimentos da véspera. Junto dele, a filha, saudou-me com afectividade. Tinha sido minha colega na Faculdade. Este encontro aliviou a tensão.
O dia de exames decorreu sem incidentes. A sala estava cheia quando a sessão se iniciou e foi esvaziando ao longo da manhã, sinal de que a normalidade regressara às salas do Colégio. O Presidente do júri, um experiente professor de Geografia, fez questão, no regresso, de me deixar junto da Pensão Império. Catanas Diogo, nervoso, aguardava, ali mesmo, a nossa chegada para confirmar as boas notícias.

sábado, 13 de novembro de 2010

Roteiros

Eu já tinha feito algumas reflexões sobre a importância do conhecimento das estradas, e distâncias que entre si guardam os lugares, não só para o bom cómodo dos viajantes e segurança das expedições militares, segundo a advertência de Vegecio, mas para a fácil conduta dos géneros mercantis e verdadeira notícia local das terras, que é a base da Geografia e uma das principais luzes da História.

J[oão] B[aptista] de C[astro], Roteiro Terrestre de Portugal. 5ª edição. Lisboa, Impressão de João Nunes Esteves, 1825. p. 3.

[Roteiro] de Lisboa às Caldas


Pela estrada de Runa se evita uma légua; porque passada a Mata da Guerra se toma a estrada da mão direita que vai dar a Runa, e daí à Bugalheira, e logo às Caldas.

Por outro caminho

Também se vai pelo Tejo até Vila Nova da Rainha, e daí segue a derrota ordinária.

Op. cit. p. 39-40.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (2)

As férias desse Natal de 1970 dediquei-as pois ao estudo do programa de Filosofia do 7º ano do liceu. Recuperei o compêndio pelo qual estudara, o famoso “Bonifácio” de má memória – ao qual, contra minha vontade, o meu nome andou sempre associado – comprei o do “Saraiva” e revolvi velhos apontamentos anti-pedagógicamente ditados pela Dr.ª Deolinda Ribeiro. Mas a salvação veio de um excelente manual utilizado no Liceu Francês e que descobri numa das livrarias do Campo Grande. Adquiri também as antologias de textos de Filosofia e Psicologia organizadas pelos Professores Joel Serrão e Borges de Macedo. Com esta bibliografia, devidamente lida e passada a esquemas e notas, senti-me enfim em condições de enfrentar a tarefa de preparar jovens de 17 e 18 anos para o exame de filosofia, convicto de que estaria mais habilitado para esse efeito do que os professores que me tinham cabido em sorte 5 anos antes...
Os meus pais quiseram acompanhar-me, no regresso a Castelo Branco A  minha mãe, em particular, fazia questão de verificar as condições que eu deveria ajustar para uma estadia prolongada. Feitas as contas ao montante total das viagens, concluíram pela vantagem de alugar um carro de praça. Fecharam o negócio com um motorista conhecido e lá partimos do Carvalhal Benfeito, Caldas da Rainha, num dos primeiros dias de um Janeiro escuro e chuvoso. A partir de Abrantes, à chuva juntou-se o frio e, mais à frente, os primeiros flocos de neve. Em Vila Velha de Rodão, a altura de neve na estrada era já tão significativa que o nosso condutor se declarou incapaz de prosseguir. “Paremos enquanto é tempo; mais à frente podemos ficar empanados e ter de dormir no carro” – disse.
Em Vila Velha de Ródão, soubemos que os comboios para o nosso destino ainda funcionavam. Foi assim que, já de noite, chegámos a Castelo Branco. Cansados, ansiosos, cheios de frio, carregando malas de livros e de roupa. Dirigimo-nos à Pensão Império, a unidade hoteleira com a qual pré-contratara um aluguer de quarto com refeições e tratamento de roupa por 1500$00.
O meu vencimento ia ser de cerca de 4700$00 por mês. Os professores provisórios eram então contratados de Outubro a Junho, ou seja por 9 meses (no meu caso de meados de Dezembro a Junho). Os subsídios de férias e natal não constavam dos direitos dos funcionários públicos. Em contrapartida, os seus salários não pagavam impostos.
A minha mãe “apovou” as instalações. Na Império, eu dispunha de um quarto com janela e uma mesa de trabalho e um pequeno lavatório (a casa de banho, com duche e sanitários, encontrava-se no corredor, servindo 5 quartos). A comida era abundante e de boa qualidade. Como o meu contrato era ao mês e eu saía algumas vezes ao fim de semana, era compensado podendo convidar colegas a almoçar ou jantar comigo sem qualquer pagamento.
Depressa estabeleci uma rotina em Castelo Branco. As manhãs de Segunda a Sábado eram ocupadas com aulas. Depois de almoço ficava na pensão a trabalhar. Ao fim da tarde saía para praticar algum desporto. Fiz-me sócio da Assembleia, um clube das elites locais onde se podia jogar ténis de mesa. Na maior das vezes era com alunos que jogava. Em determinada altura fui convidado para me filiar no Benfica e Castelo Branco e por algum tempo integrei a sua equipa de competição. Depois de jantar, voltava a sair para tomar um café com colegas. O Turismo (situado no Hotel com o mesmo nome) e o Avis eram os meus cafés preferidos. Os colegas que aí vinham conversar eram poucos: o já aludido Joaquim Artur Marques de Carvalho, um professor de Educação Física, conhecido por "El Bigodón", um professor de Ciências cujo nome não recordo, o maestro Carlos Gama, professor de Canto Coral. Do Joaquim Artur sentia-me mais próximo, tanto em razão da formação em História, como de outros interesses intelectuais. Acontecia que terminado o café, regressando os colegas às suas casas, era  procurado por alunos que me vinham acompanhar à Pensão aproveitando para conversar sobre os mais variados assuntos. De facto eu sentia-me muitas vezes mais próximo daqueles jovens do que dos meus colegas e embora julgasse saber que a camaradagem entre professores e alunos era motivo de apreensão por parte de alguns professores do liceu, nunca fui admoestado ou advertido pessoalmente pelo facto. Também é certo que nunca senti em qualquer das duas turmas de 7 º ano – uma masculina outra feminina – qualquer ameaça ao clima de trabalho e aprendizagem motivado por essa cumplicidade conquistada fora da escola. Nos fins de semana em que fiquei em Castelo Branco, aceitei convites para participar em piqueniques e outras realizações de convívio organizados pelos estudantes. Com as raparigas o relacionamento foi bem menos próximo e intenso. Mesmo assim, recordo-me que por vezes apareciam no café Turismo ou na Pensão Império para me colocaram dúvidas ou me pedirem opinião sobre leituras.
Apesar do conservadorismo dominante no Liceu, só uma vez senti a pressão institucional dele resultante. Tratou-se de uma ocasião determinada: uma visita do Presidente da República à cidade. Aos professores foi distribuída uma carta circular assinada pelo Reitor convidando-os para uma sessão de cumprimentos que iria ter lugar na ocasião – um Domingo – no Governo Civil. Pedia-se que confirmassem a presença. Dois dias antes da data prevista, o Reitor deve ter verificado que o número de professores disponíveis para cumprimentar o Almirante era decepcionante. Tomou então uma medida que a todos colheu de surpresa: convocou, ao abrigo dos poderes que a Lei lhe conferia, uma reunião do Conselho Escolar para o dia, local e hora em que Américo Tomás estaria no Governo Civil. Como se sabe, a falta de um professor a um Conselho Escolar só podia ser justificada com atestado médico.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

O vinho da Festa de São Martinho

Pieter Brueghuel o Velho (1525-1569)
Pormenores:



quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Lisboa em meados do século XIX

Lembram-se de Lisboa, no estado em que ainda todos nós a conhecemos?
Tudo às escuras...
[...] 
De vez em quando vinha algum episódio justificar a lei da harmonia e dar maior feição ao génio melodramático da quadra. Abriam-se, por exemplo, as portas do Limoeiro, e aí rompia pela cidade inteira a vasta cambada de malfeitores. Ferviam os tiros pelas ruas: tropa para um lado, tropa para outro; daqui facínoras, dacolá soldados; vivia a cidade em sustos.
Nunca se tinha certeza de que as lojas não fechassem de dia. Dormia-se de espada à cabeceira. Houve quem enriquecesse a vender apitos!
[...]
A população vivia assombrada; a cidade, apesar do céu de anil e do Tejo de cristal dos poetas, estava feia. Em se saindo das ruas da baixa, mudava logo o aspecto: fazia horror.
Cordas à janela, com roupa a secar.
Galinhas às portas.
Um porco dentro da loja.
Rebanhos de pequenitos a brincar nas escadas, acocorados nos degraus aos cinco e aos seis, o mais velho com o mais novo às costas, esfrangalhados, sem meias, sujos, de carinhas pálidas e amarelentas.
Garotos em bandos, à pedrada, pelo meio da rua, saltando, correndo, esbarrando em quem passava.
Ao portal, a mãe a remendar o fato, a filha a fazer meia; a avó, idiota, sentada lá dentro a um canto.
Lojas térreas, húmidas, impossíveis no inverno; um cheiro de trapo podre a exalar-se daquilo tudo!
O luxo exterior das vivendas era papagaiaos; quem não tinha papagaio, tinha uma arara; quem não tinha arara, tinha um periquito; quem não podia sequer ter periquito, punha um papagaio...de pau na janela da sacada.
À hora do largar da agulha falava-se de janela para janela como se o facto de ser vizinho a alguém autorizasse a travar conhecimento; pedia-se um ramo de salsa, o saca-rolhas emprestado, falava-se de uns e de outros, discorria-se em voz alta a respeito da vida de cada qual e ao cair da noite fechava-se toda a gente nos diferentes andares do seu prédio como objectos guardados nas gavetas de uma cómoda.
Então principiava a grande noite.
Tudo quieto, soturno e morto...

Júlia César Machado, "Introdução" a Novo Guia do Viajante em Lisboa, Sintra, Colares, Mafra, Batalha, Setúbal, Santarém, Coimbra e Bussaco. 3ª edição. Lisboa, J. J. Bordalo, 1872. p. 3-9.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Fernando Piteira Santos

A sessão de hoje sobre o 5 de Outubro na Livraria Almedina (Atrium Saldanha) acabou por se fixar no conceito e evolução do Partido Republicano enquanto Partido-Frente. Como na assistência predominavam historiadores - jovens e menos jovens - o debate foi vivo, embora porventura um pouco especializado. Ainda assim, espero que o exercício de análise política, procurando descodificar as orientações, as atitudes e os comportamentos políticos, tenha sido inteligente e esclarecedora.
Ocorreu-me, sem que o tenha no entanto dito na altura, que a forma como se discutiu o tema do Partido-Frente funcionou como uma pequena homenagem a Fernando Piteira Santos, que foi quem inspirou a aplicação da noção de Partido-Frente ao P.R.P. ("Na transição do constitucionalismo monárquico para o constitucionalismo republicano: a crise do Partido Socialista e a crise do Partido Republicano", Análise Social, n.º 72-73-74, Lisboa, 1982).
Conheci-o depois do 25 de Abril. Leccionava na Faculdade de Letras de Lisboa, no mesmo horário e na sala ao lado daquela em que eu dava aulas, no princípio da década de 1980. Tornou-se habitual, encontrarmo-nos 10 minutos antes, numa das nossas salas, para trocarmos impressões sobre os mais diversos assuntos: a situação da Faculdade, temas de história e, mais frequentemente, de política. Fernando Piteira Santos era director do Diário de Lisboa e os seus editoriais, escritos com lucidez e clarividência, eram de leitura obrigatória para todos os que queriam acompanhar a situação política. Em 1984, convidei-o para integrar a Comissão Científica do Programa Comemorativo do Centenário do Nascimento de Raul Proença, missão que aceitou e exerceu com emprenho e competência.
Lembro-me do seu activismo, em 74/75, com Manuel Alegre, no que designou por "Centros Populares 25 de Abril". Diferentemente deste seu companheiro de exílio argelino, não aderiu ao Partido Socialista. Mais tarde, creio que fez parte dos fundadores da associação "Fraternidade Operária", que tinha à frente António Lopes Cardoso, outro dos que viera de Argel em 1974. Fernando Piteira Santos conhecia bem a  ambição e a prática políticas da FPLN - Frente Patriótica de Libertação Nacional - de que foi dirigente em Argel. Foi aí certamente que colheu a inspiração para definir a natureza do Partido Republicano.

Uma excelente fotografia de F. Piteira Santos, da autoria de Luiz Carvalho, pode ser vista aqui.

Análise. Conclusão.

José Medeiros Ferreira em Cortex-Frontal:

Explorar a derrota

O SLB não soube explorar a vítória no campeonato.Perdeu-se na pré-época.Logo no primeiro jogo a sério na Luz percebeu-se que Jorge Jesus tinha sido o treinador campeão mas não servia para uma estratégia de futuro.Andou cinco jogos a louvar-se nos golos que a equipa não sofria.De repente, em cem minutos, a defesa de betão sofre oito golos.Ontem disse adeus à renovação do título por excesso de crença na «táctica».
Ora essa circunstância leva a que os critérios financeiros para a venda de jogadores já na época de Dezembro retomem a dominância nas prioridades da SAD., explorando assim a derrota desportiva à vista.O pior é que o jogo de ontem deve ter feito baixar a cotação de alguns activos mal aplicados.Só nos resta um último esforço na Liga dos Campeões.E saber sair deste poder pessoal no futebol.Ponto final.

Cerâmica "palissy" em Raissac e no Louvre

Christine e Jean Viennet fizeram do castelo de Raissac, perto de Béziers, na região do Languedoc, uma galeria de arte, um centro de produção vinícola, um equipamento turístico de visita e permanência. Ele é pintor e produtor de vinhos. Ela, de origem norueguesa, ceramista. Cultiva o estilo "palissy", realizando peças segundo os padrões naturalistas descobertos no século XVI por Bernard Palissy e continuados no século XIX por ceramistas em várias cidades europeias, incluindo a vila das Caldas da Rainha. A sua paixão por este género de faiança levou-a a reunir uma importante colecção de "neo-palissys".
No Louvre, parte desta colecção pode ser vista na exposição "Bernard Palissy et ses suiveurs, du XVI siècle à nos jours". Um conjunto importante de peças do ceramista caldense Manuel Mafra figura na exposição, cedidas pelo coleccionador Duarte Rodrigues. Um catálogo, elaborado por Christine Viennet foi editado.
Oito páginas do catálogo são dedicadas aos ceramistas caldenses: Manuel Mafra, José Alves Cunha, José Francisco de Sousa, Rafael Bordalo Pinheiro, Manuel Gustavo Bordalo Pinheiro, Francisco Gomes de Avelar, Avelino Soares Belo, Francisco Elias, Herculano Elias. A informação é pouco precisa e tributária em exclusivo da obra de Marshall Katz, Portuguese Palissy Ware.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

domingo, 7 de novembro de 2010

O que eu andei... pela República

Guimarães:

Viseu:

Proença-a-Nova:

Penedono:

Leiria:

sábado, 6 de novembro de 2010

Memórias: Castelo Branco, 1970/71 (1)

Em Setembro de 1970, concluído o bacharelato em História na Faculdade de Letras de Lisboa, lancei-me à procura de emprego. Até aí tinha tido algumas ocupações e tarefas remuneradas – explicações, inquéritos, traduções – contributos significativos para fazer face às despesas de alojamento em Lisboa, mas agora era chegado o tempo do exercício de uma profissão. Havia o fascínio do jornalismo – que tentei, apresentando uma candidatura à Flama, à Vida Mundial e à Associated Press – e o ensino. Na Flama, o chefe de redacção, Beça Múrias mandou-me fazer, a título de experiência, uma reportagem sobre o rio Tejo, para a qual me senti miseravelmente impreparado. Na Vida Mundial ofereceram-me o estatuto que já tinha antes, o de tradutor de notícias de agencia. Na Associated Press propuseram-me o mesmo, depois de efectuar um teste bem sucedido, mas acenando-me com a possibilidade de passados os dois primeiros meses de adaptação, passar a ter responsabilidades redactoriais. Ainda aceitei esta oferta, mas entretanto chegou uma resposta do Ministério da Educação que me pareceu irresistível. Optei por ela, e nessa opção, sem o adivinhar na altura, foi uma vida profissional que se jogou.
De facto, eu tinha escrito uma carta referindo o facto de só ter obtido as habilitações mínimas para o ensino em Setembro e por isso não ter podido concorrer na época normal, e manifestando disponibilidade para leccionar um horário ainda não preenchido em liceus ou escolas preparatórias.
Recebi duas respostas positivas, das duas direcções-gerais do Ministério: do ciclo preparatório propondo-me um horário nas Caldas da Rainha; do ensino secundário, propondo-me um horário no Liceu Nacional de Castelo Branco. Foi esta que aceitei. A carta da Direcção Geral continha uma guia para levantar um bilhete de comboio Santa Apolónia – Castelo Branco e referia apenas que se tratava de um horário completo, ou seja 22 horas lectivas.
Castelo Branco não fazia parte do reduzido lote de cidades de que tinha conhecimento directo. Lembrava-me apenas que, em miúdo, visitara o Fundão e Alpedrinha, localidades do distrito de Castelo Branco, acompanhando uma viagem memorável do meu avô à terra onde vivera até aos dezoito anos.
Tomei o comboio no dia 12 de Dezembro, tendo em atenção que a carta indicava para apresentação o dia 14, uma Segunda-feira, caso estivesse interessado no lugar. O meu primeiro contacto com a linha da Beira foi elucidativo sobre a distancia a que doravante estaria dos amigos e companheiros de Lisboa. Cheguei ao destino mais de cinco horas depois.
Instalei-me na pensão “Caravela”, cujo letreiro me chamou a atenção numa das esquinas visíveis no jardim principal da cidade. No dia seguinte, procurei o Liceu e apresentei-me ao Reitor.
Catanas Diogo, assim se chamava o reitor do Liceu Nacional de Castelo Branco era uma figura magra, de modos rígidos e secos. Vestia de preto. Olhou para mim, por detrás dos óculos, estendeu-me a mão e logo a seguir uma grossa caderneta verde. Não escondeu a decepção que a minha presença lhe provocara. Comentou: “antigamente os professores apresentavam-se de gravata”. A camisola de gola alta, apropriada ao frio da época e da região, que eu envergava tomou-a como sinal de rebeldia. Fiquei calado. Quando começo? – perguntei. Amanhã – retorquiu, dando a conversa por encerrada.
De regresso ao quarto da pensão, avaliei pela primeira vez a extensão do desafio. O horário que me destinavam incluía duas turmas de 7º ano (ano terminal do secundário) de Filosofia, quatro turmas de 3º ano de História e duas turmas de Organização Politica e Administrativa da Nação de 6º ano. Fiquei literalmente atordoado. As turmas de história eram de miúdos de 12 e 13 anos e eu não tinha qualquer experiência de lidar com adolescentes. Mas o problema maior era sem dúvida o do ensino da Filosofia. A minha preparação nessa área era constituída exclusivamente pela minha própria passagem enquanto aluno pelo ensino liceal e a frequência de uma cadeira de Introdução à Filosofia no primeiro ano do Curso de História.
Enquanto as Faculdades de Letras tinham procedido no final da década de 50 à separação das licenciaturas de História e de Filosofia, no ensino secundário continuava a funcionar o grupo de histórico-filosóficas, independentemente da formação original dos professores.
O horário que me coubera tinha sido atribuído inicialmente à Professora Adelaide Salvado - entretanto chamada para estágio - deixara no liceu uma aura de competência profissional e científica. Só assim se explicava que lhe tivesse sido atribuída tarefa docente tão difícil: os anos iniciais do ensino da História e os anos terminais e de exame do ensino da Filosofia. Motivo suplementar, pois, de apreensão da minha parte.
No dia seguinte apresentei-me no Liceu para cumprir o horário. A minha predecessora já tinha indicado os manuais e dado alguma matéria. Limitei-me a reiterar as decisões anteriores e averiguar a que ponto da matéria os alunos haviam chegado. As aulas do primeiro período escolar estavam prestes a terminar. Os conselhos de turmas que se realizariam de seguida para dar as notas estavam autorizados a não atribuir qualquer classificação aos alunos que tinham transitado da Professora Adelaide Salvado para mim. Sosseguei os estudantes quanto a esse facto, mas preveni-os de que estávamos obrigados a cumprir todo o programa e de que a nota final seria calculada pela média dos dois períodos seguintes.
Percebi e sensação que a minha chegada causara. Nos meus 21 anos, eu era o professor mais jovem de todo o Liceu, cujo corpo docente era maioritariamente constituído por professores possuidores da larga experiência de muitos anos de carreira. Descobri entre os meus colegas dois com os quais, embora mais velhos, podia partilhar alguma juventude e a condição de forasteiro: um professor de História, Joaquim Artur Marques de Carvalho, e outro de Filosofia, António Melo, ambos do Porto.
As férias de Natal iniciar-se-iam dali a poucos dias. Tomei parte nos conselhos de turma, averiguei as condições logísticas com vista a uma instalação futura menos precária e participei num jantar para que fui convidado a fim de conhecer um poeta neo-realista que na altura se encontrava em Castelo Branco, José Ferreira Monte (pseudónimo de José Ferreira Moreira da Câmara, nascido em 1922 e falecido em 1985)).
A 18 de Dezembro parti de Castelo Branco para Lisboa, disposto a adquirir bibliografia e preparar aulas para enfrentar a tarefa cuja dimensão me pareceu excessiva.
Na bagagem trazia agora uma prenda de natal para o meu Avô e para o meu Pai. Não tinha dúvidas de que seria bem apreciada: um queijo da Serra. Pequeno é certo – até onde o meu magro orçamento podia chegar – mas o mais apreciado e lembrado produto de quem ali nascera, entre as Serras da Gardunha e da Estrela.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Castanhas

Depois de uma falsa partida, em Setembro, chegaram às vilas e cidades.
Goya, na série "meninos", pintada entre 1776 e 1785, dedicou-lhes um "Meninos brigando por castanhas". À janela um cavaleiro atira castanhas. Os rapazitos disputam-nas. Uma menina, assustada, chora.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Pensar a mobilidade

Pensar a mobilidade no espaço, mas ser incapaz de a conceber no tempo, é, enfim, a característica do pensamento contemporâneo apanhado na armadilha de uma aceleração que o surpreende e o paralisa. Mas, por esta mesma razão, é no espaço que ele trai a sua doença. Perante a emergência dum mundo humano conscientemente coextensivo ao mundo inteiro, tudo se passa como se recuássemos perante a necessidade de o organizar e nos refugiássemos por detrás das velhas divisões espaciais (fronteiras, culturas, identidades) que até agora sempre foram o fermento activo dos confrontos e das violências.

Marc Augé, Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot & Rivages, 2009. P. 88-89

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O Milagre Segundo Salomé

No termo do ciclo de cinema e tertúlia “A Primeira República no Cinema” o que ocorre dizer, em primeiro lugar é que a qualidade literária do argumento – José Rodrigues Miguéis – e do guião – Carlos Saboga – marcam e distinguem o filme de Mário Barroso. No comentário de João Lopes, salienta-se que o cineasta “aposta na possibilidade de a nossa relação cinematográfica com a história ser um exercício que combina a transparência de algumas memórias com os sinais ambíguos dos seus fantasmas”. O nexo com a história é neste filme mais ténue do que no romance em que se inspirou. As histórias tecidas em torno da figura de Salomé são em primeiro lugar histórias de amor, porventura a mais “improvável” categoria de histórias. João Lopes refere-se à “vulnerabilidade” do amor, para identificar esta obra de Mário Barroso como “um filme sobre o valor politico do amor, quer dizer, sobre a sua funesta impossibilidade”. Mas de facto, Salomé morre às mãos de um tenente que a persegue, desde o passado, e que não suporta o voo da mulher por quem se sente obcecado. O assassinato tem um valor simbólico: é a liberdade, vista pelo ângulo de uma sociedade dinâmica mas indefesa, que cai às mãos do tresloucado militar.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

A memória

as imagens reais ou imaginárias, que prosseguem até ao sono
as imagens de um momento banhadas por uma luz que só a elas pertence


Desvaneceram-se todas repentinamente, como acontece com os milhões de imagens que se perfilam por detrás da cara dos avós que morreram há meia centena de anos e dos pais que também já morreram. Imagens que nos retratam adolescentes traquinas no meio de pessoas que desapareceram antes mesmo de termos nascido, enquanto na nossa memória estão presentes os nossos filhos ao lado dos nossos pais e dos nossos colegas de escola. O mesmo acontecerá um dia na lembrança dos nossos filhos, por entre netos e pessoas que ainda não nasceram. Tal como o desejo sexual, a memória nunca se detém. Coloca os mortos a par dos vivos, os seres reais a par dos imaginários, o sonho a par da história.

Annie Ernaux, Les Années. Paris, Gallimard, 2008. p. 14-15.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

O 31 de Outubro em Alpiarça

José(s) Relvas discursa(m) na "Praça da República".

José Relvas "proclama" a República na varanda (Pavilhão do "Águias")