Subamos à cabeça do cónego.
Upa! Cá estamos. Custou-te, não, leitor amigo? É para que não acredites nas pessoas que vão ao Corcovado, e dizem que ali a impressão da altura é tal, que o homem fica sendo coisa nenhuma. Opinião pânica e falsa, falsa como Judas e outros diamantes. Não creias tu nisso, leitor amado. Nem Corcovados, nem Himalaias valem muita coisa ao pé da tua cabeça que os mede. Cá estamos. Olha bem que é a cabeça do cónego. Temos à escolha um ou outro dos hemisférios cerebrais; mas vamos por este, que é onde nascem os substantivos. Os adjectivos nascem no da esquerda. Descoberta minha, que, ainda assim, não é a principal, mas a base dela, como se vai ver. Sim, meu senhor, os adjectivos nascem de um lado, e os substantivos de outro, e toda a sorte de vocábulos está assim dividida por motivo da diferença sexual...
- Sexual?
Sim, minha senhora, sexual. As palavras têm sexo. Estou acabando a minha memoria psico-léxico-lógica, em que exponho e demonstro esta descoberta. Palavras têm sexo.
- Mas, então, amam-se umas às outras?
Amam-se umas às outras. E casam-se. O casamento delas é o que chamamos estilo. Senhora minha, confesse que não entendeu nada.
- Confesso que não.
Pois entre aqui também na cabeça do cónego. Estão justamente a suspirar deste lado. Sabe quem e que suspira? É o substantivo de há pouco, o tal que o cónego escreveu no papel, quando suspendeu a pena. Chama por certo adjectivo, que não lhe aparece:
“Vem do Líbano [esposa minha, vem do Líbano, vem... As mandrágoras deram o seu cheiro. Temos às nossas portas toda a casta de pombos...
- Eu vos conjuro, filhas de Jerusalém, que se encontrardes o meu amado, lhes façais saber que estou enferma de amor...”].
E fala assim, pois está em cabeça de padre; se fosse de qualquer pessoa do século, a linguagem seria a de Romeu: “Julieta é o sol... ergue-te lindo sol”. Mas em cérebro eclesiástico, a linguagem é a das Escrituras. Ao cabo, que importam fórmulas? Namorados de Verona ou de Judá falam todos o mesmo idioma, como acontece com o taler ou o dólar, o florim ou a libra, que é tudo o mesmo dinheiro.
Portanto vamos lá por essas circunvoluções do cérebro eclesiástico, atrás do substantivo que procura o adjectivo. Sílvio chama por Sílvia. Escutai; ao longe parece que suspira também alguma pessoa; é Sílvia que chama por Sílvio.
Machado de Assis, “O Cónego ou Metafísica do Estilo”. In Várias Histórias. Rio de Janeiro/Paris, Livraria Garnier. P. 276-277.
sexta-feira, 6 de agosto de 2010
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8 comentários:
Senti uma singular felicidade ao ler este texto: é inteligente, clarividente,vibrante de interpretação. Permitiu-me descobrir algo fundamental, passar a ver mais do que antes via.
Adoro Machado de Assis, autor que escreveu no século XIX já com o conhecimento que a Psicologia descobre agora. Até sobre o cérebro humano.
Não lhe conhecia este livro. O João Serra acha sempre mais do que eu achara antes. Ainda bem que dá aqui a conhecer o que achou.
A ideia de as palavras terem sexo, amarem-se e buscarem-se naquilo que escrevemos é uma realidade que me fascina tanto que, pelo menos neste momento, me reconcilia inteiramente com a vida.
- Isabel X -
Comentar Machado de Asssis é prestar contas à Língua Portuguesa.
Onde mora o perdão para o que fazem no ensino brasileiro? Nascido da mais nobre estirpe através, da educação dos Jesuítas evoluindo à notada Academia de Letras cujo patrono Machado de Assis, de tanto mérito à causa, lastimaria a ineficiência dos dias atuais. Bem sabido nos é, de que vergonhosamente foram recolhidos milhares de cartilhas de formação infantil pelo MEC, por não terem a mínina condição de serem lidas, cujos textos literários de baixo calão comprometia a inocência da tenra idade.
Poderíamos atestar as pedagogias, franquear necessidades, ou vigores de uma sociedade nada vigilante...
Mas, se o perdão tivera morada este seria nas casas editoriais, desarmados crivos e armados embustes a integridade da língua portuguesa. A falta de qualidade não nos ataca, mas ao rebento. Não nos substima, mas perde a força. Não nos violenta, mas desapropia paixões.
A dinâmica das letras sem compromisso ético perde a essência, o encanto, a finalidade educativa. Com selos de qualidade a Literatura deveria ser tarjada. Uma substância limpa, coerente e precisa ao despertar a luz do conhecimento e instrumento de valor.
Portugal deveria lançar o selo Machado de Assis no Brasil, e cobrar de cadeira atitudes em relação a língua que leva seu nome Portuguesa.
Eis um belíssimo e vigoroso manifesto que subscrevo inteiramente, Cláudia!
É um gosto lê-la!
- Isabel X -
Obrigada Isabel X,tal é a seriedade da temática literária como sinal a dinâmica que as pessoas buscam atropelando convenções, também o sintoma de grandes editoras espanholas a exemplo a Ed. Moderna com inventimentos de apostilas objetivando 100% do mercado de ensino público brasileiro, tomando de assalto o coração da língua portuguesa.
A exemplo do pacto Lusófono que já é uma realidade, talvez fosse possível um Selo de Qualidade Literária, atestando, níveis de especificações, promovendo a cultura literária, inclusive portuguesa, ditando regras no país. Entendo que existem excelentes escritores brasileiros, mas nada é requisitado para publicar-se uma obra, ou abrir uma Academia de Letras, no caso seriam casas do "Saber Português" o que implica na soberania deste idioma.
O que Portugal pode? No Brasil, Machado de Assis diz que apenas Portugal, pode tudo! Segundo ele além de Sexo, as palavras tem origem.
Aquilo de que fala, Cláudia, em relação ao que se passa no Brasil, é inteiramente novo para mim.
Quanto a Machado de Assis ter dito que a Portugal cabia um papel fundamental, por ser a origem da língua dos dois países - Portugal e Brasil - acredito que sim, mas não vejo como.
O que vejo é que quem crê em Portugal não são os portugueses que por cá habitam, mas aqueles que a História deixou por esse mundo fora.
Nós por cá estamos tão cansados, Cláudia...
E isto digo eu que gosto de Portugal!
- Isabel X -
Isabel X, não seria o seu tal cansaço, mas aos seus, em blogs mundo afora abandonados, sinal ao desencontro, sem anseios ou suspiros, que bem conhecem o bom gosto de vossa língua. Há, Isabel, todos os tempos são difíceis.
O que seriam das cores sem as tintas? E, estas seriam invenções do homem para imitar à Deus. Pois, há de vos convir, que o prisma é obra da natureza e a palheta do homem.
Ao escrever tentamos dar vozes aos anjos, por que somente anjos não carecem de perfeição, pois sendo estes a perfeição, assim a escrita o é.
Vou além. Sendo Deus o verbo, então o verbo é o sopro divino, e como tal sua conjugação tenha de ser divinal. E, apenas entre todas, a Língua Portuguesa tivera conjugado ao Mais-que-perfeito, como não fora esta língua um Sacramento?
Vossa força está na língua portuguesa, ferramenta contra o cansaço.
Declaro-me profundamente emocionada pelas suas palavras, pelos sentimentos que se adivinham por trás delas, que em si as modelam, Cláudia! Pela beleza que nelas reside e delas irradia!
Impressiona-me muito encontrar alguém que pensa e sente assim, tão em sintonia comigo, uma voz vinda do outro lado do Atlântico, tão próxima, aqui no blogue do João Serra.
E o mundo fica melhor!
- Isabel X -
Isabel, ao garimparmos conhecimento a luz de idéias ou, poesias, busca-se percepção, sem vaidades, para um mundo melhor. Este Blog, por, Prof. João Serra, oferece uma linha ao pensamento, questioná-lo, até contrariá-lo. Reconheçamos; Raros, expõe-se ao crivo do que pensam ou não. Além de que, a verdade é digna de um espetáculo, e cada qual nesta andança, sabe admirar este padrão. Reconhecendo a peregrinação por vertentes ao que possa traduzir um olhar e repartir experiências. No mérito, a justa medida em que reflete sua porção de responsabilidade, e nos desafia a tal. E se, por ventura agravantes, que sejam nossas capacidades, que o Sr. Rui, tanto admira. E assuntos como os da Língua Portuguesa, veja o “Acordo Ortográfico”. Torno a questão de especificações na escrita, e retratar um perdão ao não reivindicar Camões.
Isabel é como nos alimentos ou nos produtos tecnológicos. Insisto, Portugal tem que lançar e cobrar a qualidade da língua escrita nos livros. Seria um bem de ação ou, como vos quiser, uma benção. O mundo está inédito neste quesito da qualidade textual, veja o tamanho da importância, implicando consciência e compromisso em todos os países de língua portuguesa, imprimindo o testemunho no que tange a honra educativa na formação de indivíduos. Como é possível ter paz sendo cúmplices da ignorância?
" A paz trazia aos homens o desejo de ir além. Descobriam por que rezavam e, rezavam por que descobriam. Estes que achavam descobertos eram cobertos de penas, flores e bichos. E feito bichos, encobriam-se da natureza por que não sabiam rezar".
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