Há de facto um livro na origem do filme, o livro que Gil
quer concluir em Paris. Gil é um guionista de filmes bem sucedido em Holywwod,
mas nunca escreveu um livro a sério. Esse é o seu problema.
Desse livro sabemos apenas como começa:
“Do passado” era o nome da loja e o que
vendia eram memórias. O que tinha sido prosaico, até vulgar, para uma geração, transformara-se, com a simples passagem dos anos, em algo mágico e excepcional”.
2. Um filme sobre
cidades
No cinema, a cidade
raramente é um mero cenário. A cidade é um actor, mesmo quando se trata de uma
cidade literária.
O cinema nasce de e com a metrópole moderna. Num
certo sentido, o cinema, a sétima arte, é a arte da cidade. o seu objecto
não é apenas mostrar, é tornar visível o que o não o era na cidade. Tal como a
pintura.
“As vezes penso:
como poderia alguém criar um livro, um quadro, uma sinfonia, uma escultura, que
concorra com uma grande cidade? Impossível. Porque cada rua, cada avenida, é
uma forma artística especial” - diz Gil Pender, protagonista do filme.
Uma cidade é uma sobreposição de layers. Mais pesados e mais duros, uns, mais leves e soltos outros. Nem todos se deixam ver, alguns escondem outros. "As cidades como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor do seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa" - escreveu Italo Calvino.
Uma cidade é uma sobreposição de layers. Mais pesados e mais duros, uns, mais leves e soltos outros. Nem todos se deixam ver, alguns escondem outros. "As cidades como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor do seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas e que todas as coisas escondam uma outra coisa" - escreveu Italo Calvino.
3. Paris, cidade singular
Diálogo inicial:
- “Mas que
maravilha. Não há cidade igual no mundo. Nem nunca houve”.
- “Até parece que
nunca cá estiveste”.
- “Não venho vezes
suficientes, é esse o problema”.
E noutro passo: “E
pensar que no gélido, violento Universo, por vezes sem significado, existe
Paris, estas luzes...? Nada acontece em Júpiter, em Neptuno! Mas do espaço,
vêem-se estas luzes, os cafés, as pessoas bebendo, cantando...Paris bem pode
ser o local mais excitante do Universo”.
4. Uma homenagem a
Gertrude Stein
Allen fez de
Gertrude, judia como ele, uma personagem central do filme.
O primeiro dos Stein a chegar a Paris foi Leo, em finais de
1902. Vinha tentar uma carreira de pintor. No ano seguinte, juntou-se-lhe a
irmã mais nova, Gertrude, escritora. Michael chegou em 1904, com sua mulher
Sarah. Michael era o garante
financeiro da família, com actividade na ferrovia e imobiliário em S.
Francisco.
“Cultos,
sensíveis, criados numa família de judeus cosmopolitas, pouco atreitos a
convenções sociais, mais próximos da boémia artística que da grande burguesia
americana, os Stein vão revelar-se coleccionadores audaciosos e atípicos,
desenvolvendo um mecenato inseparável da cumplicidade artística e
intelectual”. Compraram Picassos e Matisses, logo em 1905. Gertrude tornou-se
amiga de Picasso, que pintou o seu retrato em 1906. Leo ajuda Matisse. Sarah
acompanha de perto a obra artística deste ultimo. Compram também Cézanne e Renoir. Em 1914 eram já possuidores de colecções de toda a vanguarda artística. Sem eles, muitos artistas não teriam ido tão longe nas suas
propostas mais radicais.
Esta história é uma história de aculturação. Uma família de
rendimentos que em termos americanos eram médios, mas em termos europeus altos,
adquirem em Paris uma nova identidade cultural, a partir do gosto e da
convivência com círculos boémios, recheados de expatriados e estrangeiros de
passagem, fomentando círculos informais de artistas e seus amigos. Pelas suas casas passa semanalmente essa turba
numerosa para ver as obras dos pintores de vanguarda comentadas por Leo, Sarah ou Gertrude.
No filme de Allen, Gertrude é
retratada como uma matriarca, comentando e discutindo quadros com Picasso,
apreciando textos de Hemingway. É ela quem valida o longo romance de Gil Pender
intitulado “Do Passado”.
5. Mundos paralelos
O filme de Allen é
também um exercício sobre mundos paralelos. Desde logo, entre os planos diurno
e nocturno. Aquele é o plano dos hotéis e do turismo, este o da arte e dos
artistas, aquele o da Paris dos clichés, este o da Paris surpreendente e
mágica. As dicotomias podem ampliar-se: mundo de pedantes, incultos, gente
instalada e conservadora, mundo de autenticidade, boémia e entrega.
Gil descobre a
passagem de um para o outro mundo, o que evidentemente o perturba, mas que os
surrealistas não acham estranho. Man Ray, personagem do filme, exclama: “É
isso mesmo, Habitas dois mundos. Para já não vejo nada de estranho.”