terça-feira, 15 de março de 2011

De viagem ao Minho, há cem anos. 4 - S. Torcato escreve direito por linhas tortas

Creio já ter dito que para a idolatria grosseira do minhoto, S. Torcato é um dos Hintzes de mais escandaloso favor nos paços de Jehovah; de sorte que podendo tudo, chega a alcançar despachos indecentes. Com taes sucessos, calcula-se o que a devoção haverá feito da moral, vezes sem conta; pedem-lhe tudo, que mate sogras ricas a genros, que cure fistulas e amor, que vingue a sova d'aquelle partindo a perna do outro, que meta juizo na cabeça d'um parvo, maluquices no sestro d'um sizudo, e tudo isto por gorgetas de nada, de guiza a ficar contente a fé, sem sangrar demasiado a sovinice. De milagre em milagre ahi vem crescendo a fama do santinho por clientellas cada vez mais sugestionáveis, de sorte á gerência da casa ter de alargar o balcão das graças celestes, tornando o pulso livre do santo em manancial de futuros melhoramentos.
Hoje, S. Torcato mete romarias de vinte e trinta mil pessoas, com enxugue de quarenta e cincoenta pipas de vinho; as suas rendas de esmolas orçam por seis e sete contos, quatro ou cinco dos quaes, pingadeira de caixa e de bacia; e a sua fama celeste ascende sempre, porque é um santo de carne, mais habilitado portanto que os Bom Jesus de castanho e as N. N. S. S. de cerdeira.
Vai em trinta annos que tendo crescido basta a fortuna pessoal de S. Torcato, resolveu a gerência, receosa da cupidez descentralisadora dos governos, dar pretextos de despeza ao sanctuario, refazendo este com magnificência atinente aos opíparos serviços prestados pelo santo á superstição bestial da pobre gente. Para a materialisação em pedra d'um tal sonho, deu-se o projecto da basílica por concurso, preferindo-se a traça de certo architecto allemão, que lá me disseram ser padre, e Deus o tenha feito melhor padre que architecto!
Não é dizer que o novo templo suba desgracioso ou falto de grandeza, n'esta simplória terra do Minho onde a Magestade de Deus mora como qualquer lavrador, n'um cazarão de muros nús, senão cuidar que tanto dinheiro sepulto e tão prodigiosa aptidão manual do canteiro indígena, estejam sendo esbanjados na execução d'um joujou simplesmente bonito e sem typo, d'essa architectura de thesoura que tira do romão, da Renascença e do gothico, bocados que ligam por um processo de salada, dando esse catitismo chamado em architectura "moderno", um dos fricassés recosinhados pela chateza dos commis voyageurs francezes de Bellas Artes, sobre a ignorância confusa do "antigo". Na vestiaria vendem-se estampas do alçado das torres, frontaria e planta da basílica, por onde em conjuncto vêr a que tende essa massa de pedras lavradas que lentamente sobe na colina. A igreja forma uma cruz de braços alongados, com sua espécie de zimbório ou clara-boia grande na intersecção de tronco e braços, e uma só nave, d'aboboda hemi-cylindrica ou ligeiramente abatida, tendo encostadas aos muros, sobre peanhas ou sócios altos, de meia altura dos muros, columnas corinthias de capiteis muito lavrados, sobre que virão apoiar-se os grandes arcos ou nervuras da abobada, espaçadas, paralelas, como as cintas de ferro d'um túnel. Por agora só estão construídos, metade (em altura) da frontaria da basílica e duas torres que ladeiam esta, o pavimento e arcos do coro, os muros exteriores do corpo da igreja e braços do cruzeiro, faltando o resto — a abobada inclusive, e a abside ou topo da cruz, que ha-de occupar o lugar da primitiva ermida, inda de pé. No concernente a detalhes, observarei que mesmo dentro da mixorfada architectonica, a frontaria, sobre mal composta é bastante mesquinha e um pouco nua, dada a riqueza e profusão das lavrantarias interiores.
Entra-se por um pórtico de moldura sóbria, que nada diz, e acima do qual se recorta e perfura uma rozacea de diâmetro acanhado em relação á grande superfície nua da muralha.Entre rozacea e pórtico, dois anjos colossaes, d'alto relevo, estendem por cima sua tarjeta com dísticos latinos, acima da qual sita em relevo uma medalhão da thiara e chaves papalinas. Em toda a largura da fachada, muito para além da rozacea, atravessa uma galeria de nichos, separados por columnellos e fechando nos extremos por outros nichos maiores com estatuetas. Esta galeria faz de longe o efeito d'um friso bordado, e circuita também extremamente as paredes lateraes. As torres crescem a cada banda da fachada, eguaes, tendo na correnteza d’esta, janellas trigeminadas, largas e altas, e lá em cima, diz o projecto, kiosques e varandins d'esculptura para os sinos, e agulhas ou lanternas fasciadas e abertas, pela reminiscência, suponho, do gothico florido ou flamboyante. Todo este conjuncto choca, verdade seja, de banalidade preciosa e de mau gosto, quando para harmonisar e engrandecer o retábulo d’essa frontaria com pretensões de sumptuosa, um pórtico d'entrada bastava, mais complexo d’estylo e mais solemne, ajuntando as emendas a seguir: 1.ª supressão do alto relevo d’anjos, que é uma esculptura aleijada, seguindo as litografias dos convites d'enterro; 2.ª alongar a galeria de nichos té ella ter pelo menos o dobro da altura que ora tem; 3.ª substituição da rozacea pequena, por outra immensa, aberta toda em rendas ligeiras, flamando como um sol e preenchendo a nudez de muro entre a galeria de nichos e o portal. Internamente, a bazilica impressiona melhor do que por fora, pois apesar do aspecto pezado, a profusão dos altos relevos decorativos dá um donaire d'elegancia, mercê da amorosa paciência que o canteiro portuguez põe nos trabalhos de pedra que lhe entregam. Aos entendidos recomendo as fachas d’alto relevo que vestem no cruzeiro alguns pannos oblongos de muralha; representam varas de cepa, enroladas de gavinha e inteiramente cobertas d'uvas e de parras. Toda a bazilica é granito de grão fino, d'um aristocrático tom de cinza claro, e menos duro que o outro, de sorte que facilmente se alisa e pule como o melhor calcareo branco de Payalvo. 
As obras, começadas ha trinta annos, vão lentamente á mercê das posses do mealheiro; activaram-se um pouco ha três ou quatro, e trabalham lá vinte maravilhosos desbastadores da pedra árida, vinte escravos artistas da tradição gloriosa de lavrantes que os monumentos de D. João II, D. Manuel e D. João V perpetuaram no meio dia e norte do reino, e em todo o Minho se alugam por 430 e 500 réis, de sol a sol! D'est'arte, se a igreja nova de S. Torcato é um monumento destinado a explorar o culto do maravilhoso perante a superstição de pobres diabos selvagens que ainda supõem inteligências secretas entre uma imagem de pau e o “regulador supremo do universo”, por outro, a escola de lavrantes e canteiros que alli mantém uma província tão laboriosa e ao mesmo tempo tão atrazada, quasi faz desejar para a bacia da igreja os tortulhos de libras a que tem juz essa pobre múmia de sola, tão temida e tão cómica, a cujos pés se teem rojado e rojarão milhares de gerações. Pois fomentando no Minho, a golpes de crendice embora, essa mesma cultura do minhoto, o pobre S. Torcato é bem uma força celeste. Escreve direito por linhas tortas.


Fialho de Almeida, Estâncias de Arte e de Saudade. Lisboa, Livraria Clássica, 1924. p. 92-97.

Nota: nesta transcrição foi respeitado o Acordo Ortográfico de 1911.

1 comentário:

Joaquim Moedas Duarte disse...

Em ano de centenário de Fialho de Almeida, gostei de ler este texto, bom exemplo do estilo do autor. Talvez se lhe possa aplicar alguma da crítica que ele usa para a arquitectura da basílica de S. Torcato: desequilíbrio na composição, em que convivem frases de valor artístico com preciosismos desesperantes...Pérolas de expressão com tiradas rebarbativas...
Mas no conjunto, gostei. Fiquei a conhecer esse famoso S. Torcato e a crendice popular associada...