Conheço-me. Dei o primeiro passo na senda da sabedoria, segundo Cícero: se ipsum nosce. Cavei com utilidade no preceito: Nosce te ipsum. Sabia felizmente um pouco latim para me entender mais depressa.
A minha raiva ao planeta em que estou é acerba; mas fica muito aquém da misantropia. Em rapaz fiz de Heráclito, quando não conhecia melhor do que hoje este grego que aforou as lágrimas com honras de escola de filosofia. De tal filósofo, coisa que sirva só temos o boato de que declamava e chorava em público. Hoje em dia um homem com esta sensibilidade era levado ao comissário de polícia.
Por mim e pelos meus vizinhos também eu chorei.
Eis que desce a geada de muito invernos a nevar-me, o frio a filtrar, a temperatura dos líquidos a descer, o sangue a coagular-se, e logo o cristalizar das lágrimas no coração como as concreções vítreas duma caverna.
Principiei a rir, às vezes.
Rir é contraírem-se o diafragma e os músculos faciais. Operação materialíssima, muscular, carnal, e que nenhum animal exercita.
Claro que o rir é atributo de ser racional.
A par e passo que a razão se alumia e fecunda, as contracções musculares amiúdam-se. Raciocinar é rir. O acume da sabedoria humana é ver os reversos das tragédias sociais; lá está por força a comédia. A ignorância que esteriliza, e mirra, e encalvece é a que só deixa ver uma face da medalha.
Eu não cheguei ainda aos pináculos da sabedoria.
Vou subindo.
Subir é ir um homem desdando os nós que atam a dor estranha à sua: é ir tirando às coisas tristes a sua essência lacrimável, por feição que o sunt lacrimae rerum de Virgílio não se perceba.
Camilo Castelo Branco, Introdução de A Mulher Fatal [1870], in Camilo Castelo Branco. Obra Selecta. Organização, selecção e notas de Jacinto do Prado Coelho. vol. II. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1960. p. 17-18.
terça-feira, 22 de março de 2011
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6 comentários:
O riso e as lágrimas fazem-se do mesmo tipo de secreções humanas. São irmãos siameses.
Ir "desdando nós" (que expressão mais linda!...) é bom propósito de vida quando isso se destina a retirar às coisas tristes "a sua essência lacrimável".
A alegria assim atingida provocará uma expansão inigualável.
Momento alto a leitura deste texto, tão novo é aquilo que revela. Há autores assim, que nunca morrem, que se eternizam pela novidade constante daquilo que alguma vez escreveram. É o caso agora.
- Isabel X -
Pena que seja um escritor menor - a julgar pelo relevo que tem nos programas escolares, claro.
Contesto apenas o título do livro, digamos, é tão definitiva a idéia de fatal, e as mulheres nem expressam tal vingança, por circinstância deste período.
Poderia ter sido - A Mulher Terrível, talvez os programas escolares admitessem tal encargo.
Interessante, por ser uma questão de eufemismo.
Cara Cláudia,
Camilo Castelo Branco escreveu de modo singular. Escrever era seu modo de vida, seu modo de viver. O gosto do público a que seus livros se destinavam tinha que ser tido em conta, e os títulos das suas obras destinavam-se a cativá-lo.
Caro Chantre,
há bem pouco tempo estudava-se na escola o "Amor de Perdição". Agora privilegiam-se outros autores e outras obras. Não se pode dar lugar a todos em simultâneo.
Por outro lado, parece-me que a influência da escola quanto à literatura não é tanta quanto pode parecer à primeira vista.
- Isabel X -
Argumento bem forte, cara Isabel: onde não se podem alojar todos, que se alberguem, pelo menos, alguns; e estes sejam estes os melhores (... e, de facto, quem é esse C castelo Branco ao lado de um V Ferreira, de uma L. Jorge, de um L. de Sttau onteiro, de uma M I Barreno, de uma A B Luís, de um J. Saramago, de uma H Correia e demais monstros e mestres da língua portuguesa?!)
Levou-me um impulso de comparação ao contemporâneo Honoré de Balzac, seguindo em questão, a fragilidade feminina da época que tanto o conjunto da obra permeia.
Sem dúvida, vossa explicação Isabel X, desenha a correta realidade.
Tratando como um exagero comparar ao francês.
Reconheço juntamente o disparate pela sugestão do título.
Agradeço mais uma vez, sua intervenção.
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