Vi Sophia de Melo Breyner Andresen pela primeira vez em 1967. A oportunidade foi criada pelo Colóquio “A Mulher na Sociedade Contemporânea” organizado pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, de que foi uma das oradoras convidadas.
Aluno do primeiro ano, recém-chegado das Caldas da Rainha, nem a palavra nem o conceito de colóquio evocavam para mim experiência anterior. Aquela foi a minha iniciação nesse universo onde se discutem temas complexos e pertinentes, com a ajuda de investigadores e professores seniores. Durante uma semana o anfiteatro 1 encheu-se de gente vinda de dentro e de fora da Faculdade para ouvir falar intelectuais, a maior parte dos quais eram para mim por completo desconhecidos. Alguns vinham rodeados de uma aura de respeito e admiração, pelo trabalho científico realizado ou pela coragem com que tinham enfrentado o ostracismo, a segregação ou mesmo a perseguição do regime. Percebemos todos – os caloiros – que se tratava de uma organização na qual a direcção da associação académica, liderada por Amadeu Lopes Sabino, investira muito. A associação queria reforçar o seu prestígio, somando o pioneirismo e inovação do tema em discussão à relevância dos intervenientes, e transformando um debate de ideias numa grande manifestação cultural de massas. A entrada em vigor, por aqueles anos, do novo Código Civil fora o pretexto para chamar à colação os direitos das mulheres, numa década em que, na Europa e nos Estados Unidos, se consagravam novos papéis da mulher nos planos social económico e politico. Mas o tema poderia também funcionar como um detonador de problemáticas relativas ao atraso cultural português e sobretudo ao controlo politico das liberdades públicas.
Mais apelativas ou áridas, assisti a todas as conferências, incluindo as que versavam assuntos de natureza eminentemente jurídica. Algumas aguardei com particular expectativa, pois conhecia os autores. Entre elas, a principal curiosidade ia para a de Sophia de Melo Breyner Andresen.
Sophia entrou numa sala repleta, com muita gente sentada nas coxias ou encostada às paredes da sala. A sua figura relativamente frágil recortou-se por detrás da secretária, a que se sentou. Habituado a vê-la em fotografia – que se repetem de ano para ano, como se o tempo tivesse parado – estranhei o contraste da figura mais velha com que ali me deparava. No tampo da mesa pousou uma resma de papeis e esperou que a apresentassem e lhe dessem a palavra.
Terminados os preliminares, chegou para junto de si os papéis e principiou a ler. À medida que avançava, o seu corpo fixou-se numa posição oblíqua ao tampo da mesa. Foi então que um pormenor até então ocultado me prendeu a atenção, Sophia, que estava de óculos escuros, tinha-os com uma haste partida. A princípio a coisa intrigou-me. Os óculos escuros atribui-os a uma qualquer necessidade de se proteger da luz artificial do anfiteatro. Mas uma haste partida? Tentei perceber se se trataria de modelo de óculos, mas confirmei que não. Do outro lado, os óculos de Sophia tinham haste inteira. Fora um acidente. Fascinado, tentei perceber como se manteria o equilíbrio. O feitio deles não ajudava. Mas a escritora agia com total naturalidade. Não parecia consciente daquele pormenor que tanto me inquietava. Na leitura do seu texto, que a absorvia totalmente, era absolutamente imperturbável.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
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4 comentários:
Em 1967 era eu também caloira na Faculdade de Direito. Assisti ao Colóquio com o deslumbramento de uma jovem acabada de chegar de Angola cheia de vontade de aprender muitas coisas e de ver de perto figuras que pertenciam a uma galeria de fotografias de gente até aqui inacessível. Assisti também a todas as sessões da discussão do novo Código Civil que vinha substituir o velho Código de Seabra. Que prazer sentia ao assistir às brigas, por vezes calorosas, entre os "mestres"!Na altura Elina Guimarâes era um exemplo de luta feminista, como jurista destemida na defesa dos direitos das mulheres e que de forma ténue se espelharam no Código de 67. A primavera Marcelista aproximava-se e era grande a esperança numa qualquer mudança. Em Novembro de 1967 fui presa pela PIDE. Quando me libertaram ainda voltei à Faculdade de Direito e lembro-me de ver, na Associação de Estudantes, cartazes anunciando a minha prisão e falando da minha tortura. Ainda sobre o efeito do isolamento e da tortura do sono que me infligiram aqueles cartazes tiveram um efeito terrível sobre mim.Eram testemunho do meu sofrimento. Lembro-me de ter assistido nesse regresso a uma conferência do Urbano Tavares Rodrigues sobre Saint Éxupéry. Fico feliz por poder recordar através do teu blogue estes momentos que estão na base da minha formação intelectual e civica. Um abraço,João.
Obrigado, Margarida, por este teu depoimento. De facto os óculos de Sophia eram uma metáfora. O que ela quis simbolizar é que suportava estoicamente o que se quebrara à sua volta, ligado ao seu próprio corpo. Sobre a sessão de Saint Éxupéry, a minha primeira incursão no mundo da "produção cultural" contarei alguma coisa em breve.
Dois testemunhos belíssimos!
Fico grato por eles!
Abraço
J Moedas Duarte
Além de ter gostado muitíssimo do escrito do João, que nos vem habituando a memórias - da vida e do tempo da vida - muito vivas, destaco o quanto foi enriquecido com o testemunho da Margarida Pino.
Agradeço a ambos por este novo encontro.
É nestas alturas que me render em definitivo à tecnologia!...
A narrativa construída em função dos óculos é (literariamente) muito bem conseguida.
- Isabel X -
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