8 de Dezembro [1925]
Este caderno do meu diário marca o fim de uma experiência intelectual, inspirada por Hugo e os seus permanentes comentários ao meu idealismo e ao meu puritanismo, que me faziam rejeitar qualquer manifestação de sensualidade tantos nos livros como nas pessoas. Passei então todo este ano a estudar essas manifestações, absorvi calmamente uma quantidade incrível de sensualidade francesa – Ségur, France, Prévost, Loti, Stendhal, Flaubert e inúmeros romances baratos. Além disso, estudei a fundo D’Annunzio que é talvez o mais sensual dos homens e dos artistas e que, mais do que qualquer outro, me teria podido ajudar a compreender a sensualidade uma vez que a oferece em salvas de prata de uma indescritível beleza.
Compreendi tudo. Vivi durante mais de mil horas de leitura no universo do crime, da fraqueza, da brutalidade, do desejo. Vi tudo, percebi tudo.
Perguntei, em seguida, a Hugo – Estás satisfeito com os meus conhecimentos? Vês agora o fundamento das e que julgavas fruto da minha ignorância e da minha inocência? Olha nos meus olhos – já não vagueiam. Já sei tudo. Agora a minha intolerância não vem da minha revolta ou do meu espanto, mas do meu saber. Estás contente?
- Estou satisfeito. Mas tu, minha gatinha, vejo que continuas como eras quando te encontrei. Tu eras perfeita. Não quero que leias esses livros!
E, através desta contradição bem masculina, pude compreender que tinha lido o suficiente para satisfazer o seu desejo de me ampliar o espírito.
Naturalmente eu não sou a mesma de quando me encontrou. Tenho mais idade, sou menos feliz, menos sonhadora. O cinismo europeu não passou pelo eu espírito sem pelo deixar ao menos uma dúvida. Mas, no mais fundo de mim, o meu ideal permanece, pleno de exigência e de rigor. Estes livros provaram que o mal existe, mas não que ele é o bom caminho. Ninguém me poderá impedir de experimentar uma adoração sagrada pela vida de Leonard da Vinci e uma repulsa pela de D’Annunzio. Mas aprendi a apreciar o que havia de bem em D’Annunzio. Aprendi a compaixão e a tolerância. Penso que o meu juízo não é influenciado pelas minhas reacções pessoais, como Hugo me apontava justificadamente. O mais importante é que acredito que Hugo compreende o sentido belo e nobre que dou ao puritanismo como ideal. Sente que levei longe as minhas pesquisas para afastar a possibilidade de um instintivo e cego recato perturbar o meu discernimento. E reclama de novo doçura, paz e clareza de espírito da mulher que durante muito tempo se debruçou sobre o abismo. Poder-se-á dizer, depois disto, que o homem é fácil de satisfazer?
Anaïs Nin, Journaux de Jeunesse: 1914-1931. Editions Stock, 2010. p. 910-911.
Nota:
Anaïs Nin nasceu em 1903 em Neuilly-sur-Seine e morreu em Los Angeles em 1977. Os seus pais eram músicos, membros da pequena aristocracia cubana. Ele, pianista e compositor, tinha sido criado em Espanha. Ela, cantora, tinha ascendência francesa e dinamarquesa. O casal teve três filhos e desavenças constantes que culminaram na separação em 1913. Anaïs e seus irmãos seguiram para Nova Iorque em 1914. Foi aí, com 11 anos, que iniciou a escrita do Diário. Antes já tinha vivido em Havana, Arcachon, Berlim, Bruxelas, Barcelona e Cádis.
Através do seu Diário, vemos crescer a adolescente, sempre saudosa de seu Pai, que se tornará uma das mulheres mais cortejadas da história da literatura do século XX. Como escreve a sua biógrafa Nancy Houston, num texto que intitulou “Et la fille devient ... femmes!”: a partir dos 17 anos, os homens começam a rondá-la e nunca deixarão de o fazer. Anaïs sente-se lisonjeada, surpreendida, maravilhada, reconhecida. Ouve-os e dispensa-os alternadamente, sente bater o coração, escreve escreve escreve no seu diário.”
Em 1923 casa com Hugo Guiller, de origem escocesa. O casal instala-se em Paris, onde Hugo, funcionário de um banco, fora colocado.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
2 comentários:
A literatura tem na contrapartida um desocupar do espaço de ingenuidade onde metáforas constroem experiências de interpolação, entre o que é desconhecido e o impulso de adaptar-se.
Apenas que, ao tempo, descobrem-se como seres devoradores de causas que diferem entre o objeto de seus anseios e para este como resultado na vertente: satisfação, conformismo ou desespero, diante da ingenuidade (ser uma forma de onipotência) e que a maturidade aos poucos faz a poda com tentáculos da realidade.
...Naturalmente eu não sou a mesma de quando me encontrou. Tenho mais idade, sou menos feliz, menos sonhadora. O cinismo europeu não passou pelo eu espírito sem pelo deixar ao menos uma dúvida...
De certa forma a existência pode comparar-se quase a um plano cartesiano e previsível como tal, está é a vantagem que supostamente os masculinos têem sobre a alma feminina. E, perdoem-me as mulheres pela sinceridade.
Excerto lúcido que nos leva a pensar que o erotismo não é compatível com a prática predatória da mulher, à maneira do que afirma D´Annunzio: "os verdadeiros direitos de um autor são os seus negócios de amor". Por isso, Anaïs Nin repudia esta perspectiva. Porquê? Porque se a arte é um instrumento da conquista amorosam esta não é senão pura concupiscência, uma vez que . A obra de arte, "cosa mentale" (Leonardo Da Vincci)é teleológica, assim como o erotismo.
Enviar um comentário